Entre o "dumping" de municípios vizinhos e a insuficiência da solidariedade pontual, a crise da População em Situação de Rua exige intervenção estrutural e um pacto urgente pela cidadania plena.
Ilhéus, nossa joia do Sul da Bahia, tem a fama merecida de terra da hospitalidade, banhada pelo cacau e pelo Atlântico, mas, por trás da paisagem idílica, uma sombra social se alonga. A crescente População em Situação de Rua (PSR) nas áreas centrais não é apenas uma questão de visibilidade, mas sim um complexo nó de saúde pública, segurança e assistência, que, em última instância, denuncia uma profunda falha de governança.
Não podemos, como cidadãos conscientes e politicamente engajados, aceitar que a estrutura sistêmica continue a condenar seres humanos a uma vida entregue às mazelas: doenças, violência, tráfico e a ausência completa de dignidade.
O problema em Ilhéus carrega um agravante que beira o absurdo, a denúncia, insistentemente repetida, de que nossa cidade se tornou o destino final para o que chamamos de "dumping" social. Prefeituras de outros municípios vizinhos, baianos ou não, na calada da noite e em um ato de covardia institucional, utilizam o bom coração do nosso povo como desculpa para transferir sua população vulnerável para as nossas ruas.
Essa prática não é apenas imoral; ela é uma afronta direta ao pacto federativo e uma forma de aporofobia (aversão, ódio ou rejeição a pessoas pobres) que sobrecarrega desproporcionalmente o orçamento municipal, minando os esforços sérios de quem tenta, aqui, fazer o trabalho correto.
O tratamento à PSR não é uma questão de favor, mas de direito inalienável. A sociedade pode e deve exercer a solidariedade, mas o principal dever cívico é respeitar e defender a legislação. O Decreto Federal nº 7.053/2009 estabelece a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR), que garante o respeito à dignidade da pessoa humana, à cidadania e ao direito à convivência familiar.
Isso significa que a sociedade não pode jamais compactuar com a invisibilização, a violência ou a "arquitetura de afastamento", devendo sempre denunciar abusos. Contudo, a adesão a qualquer serviço de acolhimento deve ter caráter voluntário e não podemos exigir que o indivíduo saia da rua, nosso papel é garantir que o Estado ofereça as condições para que ele queira sair.
E aqui reside outro paradoxo, a nossa solidariedade desorganizada. É inegável a boa-fé dos inúmeros grupos, muitos de base religiosa, que se unem para distribuir alimentação nas ruas. Porém, essa "solidariedade pontual", sem coordenação com a rede de assistência social, torna-se inadvertidamente nociva. A abundância e a variedade de refeições acessíveis na rua acabam por competir com a adesão aos serviços estruturados do município e de instituições assistencialistas, desincentivando o indivíduo a aceitar o acolhimento, o cadastro e o plano de ressocialização.
Pior, a concentração de pessoas atrai o vetor de risco do tráfico de drogas, potencializando a vulnerabilidade dessa população. A caridade precisa ser politizada; precisamos transformar o alívio momentâneo em investimento estrutural.
Felizmente, Ilhéus possui equipes técnicas e centros especializados que são verdadeiras referências de humanidade, atuando na linha de frente do resgate social. Estes locais oferecem muito mais do que um prato de comida e um banho. Eles garantem o acesso à documentação, apoio médico, iniciativas de ressocialização e aproximação com as suas respectivas famílias. Este é um trabalho que colabora muito com a superação dos vícios em álcool e outras drogas.
No entanto, esses centros, por mais exemplares que sejam, não dão conta do déficit gigantesco e outro agravante é o baixo apoio que os centros recebem. Normalmente ligados a instituições religiosas, o município não participa financeiramente, mas conta com suas estruturas para auxílio nas políticas de apoio à população em situação de rua.
O esforço da busca ativa é constante, mas ele se torna ineficaz se o município não garantir a vaga de destino: leitos de alta complexidade, centros de reabilitação ampliados e, principalmente, programas de moradia de transição para quem aceita o tratamento. E nessa jornada, é fundamental o trabalho de intercâmbio para reatar os laços familiares, pois a saída definitiva da rua passa pela reconstrução de vínculos.
Por isso, esta é uma questão de política pública sim, mas também da sociedade civil. O Poder Público de Ilhéus precisa, urgentemente, agir: realizar um censo preciso para dimensionar a crise e, principalmente, para comprovar o impacto do "dumping" intermunicipal. Só com dados podemos pressionar o Ministério Público a exigir a corresponsabilidade dos municípios vizinhos, estancando essa transferência desumana.
Mas a mudança passa por todos nós. Precisamos de uma mobilização unida da sociedade civil, integrando-se ao fórum permanente, para fiscalizar e cobrar investimentos em políticas públicas de saúde, com leitos de reabilitação suficientes; políticas de assistência que priorizem a qualificação profissional para a reinserção no mercado de trabalho e políticas de segurança que, em vez de criminalizar a pobreza, se concentrem em combater o tráfico de drogas nas áreas de vulnerabilidade.
Consciência, humanidade e cidadania: estes são os pilares que devem sustentar o projeto de governo de Ilhéus. Somente garantindo dignidade, acolhimento e reais condições de autonomia para a nossa PSR, Ilhéus poderá se orgulhar de ter transformado a crise em um modelo de justiça social. O tempo da omissão sistêmica e da caridade pontual acabou. Ilhéus exige e merece uma solução estrutural e definitiva.

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