Ser bonito não é tão imprescindível, quanto fazer bonito |
Já avisei, há bastante tempo, aos meus familiares e
amigos mais próximos: sou doador de órgãos e tecidos. Quando eu bater as botas,
se quiserem me fazer a última vontade aqueles que nutrem por mim algum carinho,
cuidem para que esse meu desejo seja cumprido à risca. Rins, coração, fígado,
córneas – tudo o que do meu corpo puder ser aproveitado, que seja extraído sem
demora e encaminhado a quantos precisem dele para vencer uma doença grave,
substituir um membro falido ou ganhar algum tempo de sobrevida ao lado dos que
lhes são caros. Nenhum dos meus órgãos, ou tecidos será mais necessário para
mim, depois de extinto o sopro vital; que sirva, então, para alguém que ainda
tem a sua missão a cumprir nestas paragens. Reter conosco o que não nos
pertence mais é apego desnecessário e incompreensível. Sempre considerei
absurdo entregar aos vermes, de mão beijada, órgãos que têm melhor serventia do
que apodrecer debaixo de sete palmos de terra. Perdi alguns amigos muito jovens,
que bem poderiam ter se transformado, com a sua morte prematura, em alento para
famílias inteiras que penam nas longas filas de espera dos transplantes. Se algo
do nosso corpo já desvanecido, pode minorar sofrimentos e aliviar tantas dores,
por que não aproveitarmos essa oportunidade de, com a nossa matéria, fazermos o
nosso último gesto de caridade consciente? De minha parte, se não fosse pedir
demais à minha mulher e aos meus filhos, eu gostaria mesmo era que os meus
restos mortais fossem doados a uma faculdade de Medicina qualquer, para servir
às aulas práticas de anatomia. Fazia-se o velório, cumpriam-se os rituais de
despedida e, ao invés de o corpo ser levado à sepultura, seguiria para as mãos
dos alunos, onde talvez fosse útil para ensiná-los a salvar a vida de muitos
dos seus semelhantes. Como não me sinto no direito de fazer tal postulação (mas
a proposta está lançada, sem pressão alguma!), peço-lhes que ao menos me deem a
chance de testemunhar, lá do paraíso celeste onde pretendo habitar, a alegria
de quem tiver recebido o meu coração de intrépido sonhador e as minhas córneas brilhantes
de tanta beleza que me foi dado conhecer. Quem sabe esses agraciados farão uma
prece silenciosa pelo meu repouso eterno, entregando a minha alma às mãos
amorosas da Santa Maria, mãe de Jesus? É o que de melhor eu posso almejar,
quando tiver empreendido a grande viagem.
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