Prefeitura Itabuna

Câmara

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23 de fevereiro de 2009

ESTE ESPAÇO É PARA NOSSO DELEITE DE LEITURA Hoje oferecemos aos nossos leitores a literatura do Professor Rilvan Santana, que segue abaixo:
O ENVIADO - Prefácio “Deus escreve certo por linhas tortas” diz a sabedoria popular. Às vezes, os seus desígnios toldam a nossa compreensão e somente, muito tempo depois, entendemos o seu verdadeiro propósito, é que o homem, pela sua pequenez, pela sua limitação, é afeito para as coisas imediatas da vida e o dia seguinte é uma incógnita. Mais uma vez invocando o vulgo que diz: “o homem faz e Deus desfaz”, ou seja, sempre é necessário ter um pé atrás quando se pensa em planejar o amanhã, mesmo que esse amanhã, seja o dia seguinte. Nas Escrituras Sagradas têm várias parábolas que corroboram com o nosso pensamento, Jesus ensina que o homem não deve se preocupar com o dia de amanhã, mas andar na retidão com o seu próximo e Deus, diuturnamente, para que sua alma não seja pega de surpresa quando Deus chamá-la e o homem não tenha mais tempo de redimir-se dos seus pecados. Todavia, não significa que vivamos como tolos e alienados do mundo, sem enxergar um palmo além do nariz, mas significa que o homem não deve ter obsessão em acumular teres e poderes se esquecendo das coisas do espírito. Porém, acreditar que Deus tem um propósito em sua vida para isto selou uma Nova Aliança com o seu Filho Jesus Cristo para que todos arrependidos dos pecados e Nele acreditar, não pereça, mas alcance a ressurreição e a vida eterna nos fins dos tempos. A vida é uma sucessão de momentos e circunstâncias agradáveis e não agradáveis, faz-se necessário o homem utilizá-los na promoção do bem comum e no seu aperfeiçoamento espiritual e foi isso que fez o padre José Maria Belchior Sincrat enquanto viveu e mesmo na agonia da morte, aproveitou o seu último momento, para continuar difundindo suas idéias e suas ações através de um desconhecido, de um sósia inesperado, providenciado pelo destino que para Sincrat, o seu recém-amigo, o motorista de táxi Mário Silva, foi um enviado de Deus. O autor I O encontro O padre Sincrat estava boquiaberto e intrigado, tinha viajado mais de 600 quilômetros de ônibus para chegar à cidade de Acácia e teria que viajar mais 30 km em estrada de chão para chegar à cidade de Nova Acácia, recém – emancipada, com um sósia surgido do nada que encontrou em uma praça de táxi. Quando desceu na pequena Estação Rodoviária, ainda cedo, soube que àquela hora, não tinha ônibus disponível para lá, que somente um ônibus trafegava para Nova Acácia, pela precariedade da estrada e por falta de passageiros, saía pela manhazinha e voltava à tardinha. As pessoas de posse usavam os seus carros particulares e vez ou outra esse trajeto era feito por táxi quando surgia um forasteiro apressado que não queria esperar para o outro dia que foi o caso do padre Sincrat. Ele não levava muita coisa: uma mala com roupas e objetos pessoais, uma valise com paramentos sacerdotais e uma caixa com alguns sapatos e sandálias. Usava uma batina nova que tinha mandado fazer alguns dias antes de ter sido comunicado pelo seu bispo para ocupar a vaga deixada por um velho padre, que tinha morrido mais por velhice do que de doença, numa paróquia de uma cidadezinha do sertão baiano, que aos 33 anos de idade, Sincrat a ignorava completamente: -Filho, não pense que é uma missão fácil substituir o velho padre Agnelo Torricelli que nos deixou! – finalizou Dom Antônio após comunicar-lhe a transferência. -Por que razão? -Foi ele um dos principais fundadores da cidade, era um santo homem, endeusado, até lhe atribui milagres! -O senhor não poderia ter indicado uma pessoa mais experiente? -Eu confio no seu trabalho de evangelização e no seu jeito diplomático para conduzir esse rebanho com idéias profundamente conservadoras, arraigadas, e com um grande sentimento de perda!... - concluiu Dom Antônio. Um mês depois Sincrat partiu para Diocese de Acácia para se apresentar ao seu novo bispo, mas antes, quis conhecer in loco sua nova Paróquia e informado que não havia, àquela hora, ônibus para lá, dirigiu-se para uma pracinha de táxi ao lado da estação que naquele instante, havia somente um táxi de plantão e estupefato ficou quando encontrou aquele homem mais ou menos de sua idade e demais parecido consigo, melhor dir-se-ia: o seu irmão gêmeo, que se ambos estivessem travestidos com as mesmas vestes, ficaria difícil alguém distinguir quem é quem pela semelhança física, brincalhão, Sincrat foi quem desanuviou o encontro: -Eh filho, parece que somos irmãos de pai e mãe?... -Acredito que não, padre! Somos irmãos em Jesus Cristo... – respondeu o taxista ainda meio encabulado. -Desculpe-me filho, você tem razão, somos filhos de um único Deus e irmanados na fé em Jesus Cristo, o nosso redentor! – completou: -Surpresa desfeita, gostaria de chegar até Nova Acácia, hoje, é possível? -Se o tempo continuar assim, chegaremos lá cedo, embora seja uma estrada de chão, íngreme em alguns trechos, e muitos pontilhões de madeira!... – esclareceu-lhe o taxista. -Filho, eu já enfrentei muitas estradas de chão, em cima de caminhão, montado a cavalo – apontou para o carro – com uma beldade dessas viajarei para o fim do mundo!... – brincou mais uma vez Sincrat. -Concordo com o senhor, o presidente JK, duma hora pra outra, fez surgir nesse imenso Brasil, tanto carro bonito!... – aproveitou para se apresentar: -Mário Silva! -José Maria Belchior Sincrat! – acrescentou: -Padre Sincrat!... À medida que o carro percorria àquela estrada de chão, Sincrat observava a caatinga, encontrava de quando em vez, pastos verdejantes, cuidadosamente cercados, algumas cabeças de gado bovino, mas eram como oásis perdidos numa floresta rasteira, de cactos, pereiro, aroeira, aveloz, vegetais xerófitos e cerca de macambira, inexpugnável até mesmo para bodes e cabras. Sincrat, habituado perscrutar a alma e a vida humana, foi conhecendo a história de vida do seu taxista. Soube que ele era filho único de pais prósperos, do interior pernambucano, que tinha sido seminarista, que não tinha se ordenado pela necessidade de cuidar do seu pai que repentinamente adoeceu e tocar pra frente os seus negócios que àquela altura, não iam nada bem. Com a morte do pai, sua mãe, entrou em depressão, fragilizou-se e menos de um ano depois, morreu. Acabrunhado, quase sozinho, sem referência, desfez-se de sua herança, pagou algumas dívidas, perambulou pelo Sul do país e não sabe como, tinha pouco tempo que tinha vindo parar naquele fim de mundo. Sincrat era todo ouvido... Repentinamente, movido por uma força interior, um vaticínio inexplicável, uma profecia intuitiva, falou: -Filho, Jesus tem um projeto em sua vida!... Depois de uns 20 km percorridos, numa estrada de muitos sulcos, buracos, pontilhões e ladeiras, porém, de viagem relativa, o tempo começa fechar e algum tempo depois, desce um torrencial de chuvas espessas que durou uns três quartos de hora. Aconselhado por Mário Silva, interromperam a viagem e recolheram-se num chalé velho à beira da estrada, que parecia ter sido, outrora, um posto de tropeiro, abandonado. Levado agora, pela relativa intimidade, Sincrat abre o seu coração e sua vida para o recente companheiro de viagem. Fala-lhe da infância, da adolescência, da família, do seminário, da ordenação, das paróquias que atuou e finaliza como tinha vindo parar naquele lugar longínquo e desconhecido do país. Falou-lhe de sua missão, da responsabilidade de substituir um homem santo como o saudoso padre Agnelo Torricelli, de transformar mentes religiosas fanáticas e imprimir em sua nova paróquia, projetos educativos e sociais para minorar a vida daquele povo simples e ingênuo. O céu milagrosamente limpo, o Sol reaparece mais ou menos na mesma intensidade e as águas de chuva ainda escorriam volumosas nas valetas e nos córregos, quando Mário e Sincrat decidiram prosseguir viagem. Sincrat continuou falando do que esperava operar em Nova Acácia e pedia ao taxista que falasse do povo, das autoridades e dos costumes do lugar: -Padre, eu tenho pouco tempo em Acácia, aqui em Nova Acácia não conheço ninguém!... – acrescentou: -As características são as mesmas de lá: um povo simples, a maioria analfabeta, de uma religiosidade fanática e desassistidos pelos poderes públicos. Todavia, uma coisa me chamou a atenção desde que cheguei nessas terras: não existe miséria! É uma população de forte tradição agrária, toda família tem seu pedacinho de terra onde cria e planta, enfim, é uma terra de fartura! – completou: -O senhor terá muito trabalho, mas de muita satisfação espiritual!... -Parabéns!!! – Sincrat não se cansava de bater palmas, admirado pela inteligível resposta de Mário, deixando-o sem jeito: -Padre, falei tolices... -Não, não, não! -Por que tanto aplauso?... -Pelas informações sucintas e brilhantes! – completou: -Filho, tu és um homem ilustrado, poderá contribuir muito para o desenvolvimento desta terra! - e num insight, propõe-lhe: -Filho, quer trabalhar comigo na paróquia? – pegou Mário de surpresa: -Eu? Como?... -Ensinando, evangelizando, administrando, nas ações sociais... Enfim, o meu braço-direito! – Mário confessa-se tentado: -Eu vou pensar!... A amizade entre Sincrat e Mário se estreitava à medida que o carro avançava naquela estrada de barro molhado pela chuva. Inúmeras foram as intervenções de Mário para que o carro não patinasse e perdesse a direção. Parecia que eles se conheciam de longas datas. O espírita não se conteria em dizer que eles tinham ligações em vidas passadas. E, a semelhança física e o encontro desses dois homens ali naquele ermo, não fossem coincidências, mas uma das etapas dum processo espiritual. Menos de 5 quilômetros para chegarem à Nova Acácia, o mau tempo voltou, não com chuvas torrenciais, mas uma chuvinha renitente, deixando a estrada cada vez mais, molhada e escorregadia, quando em inexplicável momento, à descida de uma ladeira, o carro é puxado por uma força estranha, em vão foram os esforços de Mário para contê-lo, desceu em ziguezague ladeira abaixo e após duas ou três emborcadas, caiu com os pneus pra cima na beira dum riacho. Mário teve pequenas escoriações e pouco e pouco conseguiu se desvencilhar do banco que o prendia e num chute desesperado abrir a metade da porta e arrastando-se sair fora, enquanto Sincrat pedia-lhe socorro com dores lancinantes. O taxista conseguiu acomodar a custo o padre embaixo do pontilhão e quando se preparava para avaliar o estrago do carro, Sincrat numa voz entrecortada pede-o para que ele o ajude tirar a batina: -Fi... fi... filho, ti... ti...re... es...sa... ba...ti...na! – Mário obedeceu, mas não entendeu. Com jeito, conseguiu arrancar a batina do sacerdote e estupefato ficou quando ele ordenou: -Vis... vis...ta...vista-a! -Eu? -Si... si... sim!... E, com a voz cada vez mais arfante, convenceu que Mário lhe trocasse de roupa, assumisse sua identidade e que ele iria encontrar em seus pertences, além dos paramentos, os seus documentos e um caderno com todas as informações de sua vida pregressa sacerdotal e familiar. Tudo estava escrito: meia hora depois, a chuva parou, o céu ficou mais limpo e o pessoal do ônibus que retornava de Nova Acácia prestou socorro ao padre “Sincrat” e ao seu “motorista” que agonizava embaixo do pontilhão e faleceu pouco antes de chegar à cidade de Acácia. II Assunção Depois do sepultamento do suposto taxista, a polícia tomou providências para que sua família fosse informada, em particular, uma tia que morava numa cidade no interior de Pernambuco, único endereço encontrado. Decerto, ela se encarregaria de transmitir aos demais parentes e assim encerrar-se-ia oficialmente a morte de Mário Silva. No quarto de hotel, “Sincrat” vasculhou os pertences de Sincrat. Os seus documentos (uma identidade sacerdotal, um batistério, um registro civil e uma desbotada carteira de identidade e uma carta do bispo de sua diocese para o novo bispo da jurisdição de Acácia e Nova Acácia), se encaixavam fielmente na verossimilhança de ambos e afora uma inelegível identificação digital na RG, os demais dados não teriam contestação. Mas quem iria ler uma identificação digital? Ninguém!... Com o tempo esses documentos seriam “perdidos” e “substituídos” – pensou “Sincrat”. Passou o dia lendo um espesso “caderno”, uma espécie de autobiografia, onde Sincrat registrou toda sua vida em ínfimos detalhes e intimidade. Tinha tido uma vida santa, desde cedo, manifestou-se nele uma vocação sacerdotal e um desejo refletido de servir a Deus e a Jesus Cristo. Depois dos estudos convencionais, entrou para o seminário, moleque ainda. Depois da leitura, “Sincrat” foi tomado por um sentimento de medo e pavor, agora, perturbava-lhe a consciência de substituir aquele homem santo. Pensou em fugir e desfazer ainda tempo aquela farsa, mas os apelos de Sincrat chegavam aos seus ouvidos, cada vez mais fortes, para que ele levasse adiante o seu propósito. Ele encontrou um crucifico junto com o missal e o lecionário, agarrou-se a ele, ajoelhou-se na beira da cama, e em prantos, começou orar, pedindo a Jesus Cristo que lhe perdoasse pelo embuste, mas que lhe desse discernimento, não tinha planejado, tinha sido arrastado por circunstâncias involuntárias e se não fosse de sua vontade, desse-lhe um sinal. Madrugada ainda “Sincrat” acordou. Não sabia se foi um sinal ou coisa de sua mente, mas sonhou com Sincrat insistindo-lhe que levasse adiante o seu propósito, a sua missão, pois ele não o encontrou ali naquele fim de mundo por acaso, Jesus Cristo o enviara para lá com esse desígnio, ele não podia fugir desse chamamento, que sua impostura seria por uma boa causa e o bem está acima da justiça do homem, que sua missão seria maior do que a assunção de uma nova identidade que não pediu... Ajoelhou-se na cama e orou. Concluiu que o sinal lhe foi dado, não podia fazer ouvidos moucos ao chamamento de Deus. Com certeza, Jesus Cristo o tinha escolhido para substituir aquele santo homem, ignorava o propósito divino, também não lhe cabia interpretar esse mistério, cabia-lhe, somente, oferecer-se como instrumento para os planos do Senhor e que “Sincrat” assumisse Sincrat!... III O novo pároco O bispo da jurisdição de Nova Acácia não compareceu, estava na capital do estado com o Primaz do Brasil, porém, enviou um sacerdote para representá-lo na posse do novo pároco da igreja São José, padroeiro de Nova Acácia. Dia de domingo pela manhã, a população da cidade e dos arrabaldes, quase toda, estava presente. Algumas pessoas, para conhecer o novo pároco; outras, porque não perdiam a missa do Senhor nem que chovesse canivete. A entrada de Sincrat foi triunfal. O representante do bispo um pouco atrás, ladeados pelos coroinhas e ao longo do caminho (missa campal), de um lado e do outro, cordão formado por grupos São Mateus, São Lucas, São João, apostolados da oração... e, perto do altar as filhas de Maria faziam as honras da recepção ao novo pároco. Sincrat, com um crucifixo suspenso, apresentando-o à comunidade e cada vez mais ovacionado, ia contando os passos, degustando cada aplauso, cada manifestação de boas-vindas que de vez em quando algum afoito gritava. As mulheres moças e também as velhas, acostumadas com o velho padre Agnelo Torricelli, estavam em polvorosa, mesmo com a censura da consciência, por ter doravante naquela igreja, um padre com pinta de atleta: alto, novo, forte, cabeleira espessa e barba bem escanhoada, Sincrat com certeza, representaria o novo dali em diante, pelo menos em mocidade, mas caberia à comunidade conhecer se suas idéias condiziam com sua aparência jovial ou se trazia na alma os mesmos estigmas do seu antecessor. O pessoal mais conservador da paróquia o olhava com certa reserva, eram fiéis seguidores do saudoso Torricelli, porém, esse pessoal, pela idade avançada, ia dando pouco e pouco, lugar aos mais novos, consequentemente, com mente mais arejada e receptiva. Sincrat poderia enfrentar uma oposição que pelo tamanho e pela sua tradição de fidelidade ao padre, seria facilmente neutralizada e com sabedoria, facilmente incorporada ao novo rumo que Sincrat, sem duvida, iria imprimir à sua igreja. Depois da entrada e saudação, do ato penitencial e hino de louvor (O Glória), afinadamente, cantado por um coral de garotos e garotas, regido por um jovem maestro, iniciou-se a Liturgia da Palavra, cuja leitura tirada do Antigo Testamento, do profeta Jessé: CAPÍTULO 11 1 PORQUE brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará. 2 E repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de conhecimento e de temor do SENHOR. (Jessé 11: 1, 2). Depois do “SALMO RESPONSORIAL”, lido pela mulher do prefeito e antes da proclamação do Evangelho de Lucas, pois fazia sentido ao discípulo de Cristo que estava chegando para trabalhar naquela grande seara, leu-se a primeira carta de São Paulo a Coríntios (Coríntios 1: 1, 2, 3, 4...10). Proclamação do Evangelho: . CAPÍTULO 10 1 E DEPOIS disto designou o Senhor ainda outros setenta, e mandou-os adiante da sua face, de dois em dois, a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir. 2 E dizia-lhes: Grande é, em verdade, a seara, mas os obreiros são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que envie obreiros para a sua seara. 3 Ide; eis que vos mando como cordeiros ao meio de lobos. 4 Não leveis bolsa, nem alforje, nem alparcas; e a ninguém saudeis pelo caminho. 5 E, em qualquer casa onde entrardes, dizei primeiro: Paz seja nesta casa. 6 E, se ali houver algum filho de paz, repousará sobre ele a vossa paz; e, se não, voltará para vós. 7 E ficai na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem, pois digno é o obreiro de seu salário. Não andeis de casa em casa. 8 E, em qualquer cidade em que entrardes, e vos receberem, comei do que vos for oferecido. 9 E curai os enfermos que nela houver, e dizei-lhes: É chegado a vós o reino de Deus. 10 Mas em qualquer cidade, em que entrardes e vos não receberem, saindo por suas ruas, dizei: 11 Até o pó, que da vossa cidade se nos pegou, sacudimos sobre vós. Sabei, contudo, isto, que já o reino de Deus é chegado a vós. 12 E digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para Sodoma do que para aquela cidade. 13 Ai de ti, Corazim, ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se fizessem as maravilhas que em vós foram feitas, já há muito, assentadas em saco e cinza, se teriam arrependido. 14 Portanto, para Tiro e Sidom haverá menos rigor, no juízo, do que para vós. 15 E tu, Cafarnaum, que te levantaste até ao céu, até ao inferno serás abatida. 16 Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita, rejeita aquele que me enviou. 17 E voltaram os setenta com alegria, dizendo: Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam. 18 E disse-lhes: Eu via Satanás, como raio, cair do céu. 19 Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo, e nada vos fará dano algum. 20 Mas, não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus. (Lucas 10: 1, 2, 3..., 20). Sincrat não cometeu nenhum deslize na missa, nenhuma gafe, tinha ensaiado a cerimônia no quarto de hotel enésima vezes, ademais tinha feito dois anos de Teologia no seminário quando estudante, certo que estava desatualizado e apreensivo com a situação, todavia, orava constantemente, pedindo a bênção do Senhor para cumprir aquela missão que o verdadeiro Sincrat lhe confiara. Não celebrou a primeira missa, concelebrou. O padre enviado pelo bispo foi o principal celebrante e fez da homilia a ponte para apresentar à comunidade de Nova Acácia, o novo pároco, o jovem padre José Maria Belchior Sincrat, padre Sincrat, como é chamado por todos. O representante do bispo começou enaltecendo o trabalho evangélico do saudoso padre Torricelli, um santo homem, que deixara saudade, mas deveria ter intercedido ao Senhor para que enviasse para o seu lugar um homem de fé sublime, um pastor que fosse também capaz de se sacrificar por suas ovelhas carentes naquele cantinho do sertão baiano. Que em Sincrat iria repousar o espírito do conhecimento, da sabedoria e da caridade tão fartos no seu antecessor. Jesus Cristo o tinha enviado, agora no século XX, assim como enviou os seus setenta discípulos para pregar ali novos tempos e continuar a promessa de ressurreição e vida eterna de Jesus Cristo, com a remissão dos pecados. Que Sincrat não possuía a experiência do seu antecessor, mas era pródigo em conhecimento e sabedoria, que não são apanágios da idade, mas uma vocação, um dom que Deus concede aos puros de coração desde o rei Salomão etc., etc. Depois da profissão de fé, da oração dos fiéis, da procissão das oferendas, do rito da comunhão, até os ritos finais, não se ouvia um “ai” no meio daquela multidão, todos, obedeciam de maneira sincronizada o ritual, todos conheciam cada pedaço da missa, era uma população de tradição católica. Terminada a missa, o presidente da celebração, convidou a população para ouvir o padre Sincrat, o principal motivo daquele evento. E não teria sido diferente, não arredou do lugar ninguém, todos manifestavam na expressão física, o desejo de ouvi-lo, de conhecê-lo. Ele foi sóbrio, comedido, mas brilhante. Reforçou as palavras do padre apresentador, enalteceu mais ainda os feitos e o exemplo vida de Agnelo Torricelli, apresentou-se não como o maior servidor de Jesus Cristo, mas o menor dentre eles. Finalizou convocando todos para encarar os novos desafios que a Igreja Católica enfrentava, com a proliferação de seitas e seguimentos protestantes mercenários. Fez um discurso feliz. Foi freneticamente ovacionado. Foi aceito pela comunidade... IV Uma flor dos cactos Nova Acácia não fugia à regra de toda cidade pequena, emancipada política e administrativamente, fazia pouco tempo de Acácia, duas famílias disputavam o seu destino: a família Andrade e a família Xavier. Artur, o prefeito, era o chefe do clã dos Andrade e Raimundo representava o clã dos Xavier, sempre se alternavam no poder, desde que Nova Acácia era município de Acácia. Duas famílias numerosas. Existia o primo pobre, mas a maioria era abastada: proprietários de terras, gados, imóveis lá, em Acácia e até na capital. O padre Torricelli conseguiu ao longo do tempo que as duas famílias tivessem uma convivência civilizada e um respeito mútuo, mas quando em vez, alguns dos seus membros ensaiavam romper essa convivência civilizada, Artur e Raimundo, como bombeiros de plantão, apagavam o fogo desses exaltados e a paz voltava a reinar. Porém, era uma paz tênue, qualquer interesse contrariado, o vulcão adormecido ameaçava explodir, Artur e Raimundo exercitavam a diplomacia aprendida com o velho padre Agnelo Torricelli. Marina, a filha mais velha do prefeito, uma flor dos cactos, uma rosa vermelha nascida naquela terra íngreme e seca ameaçava seriamente romper aquela frágil paz, é que se apaixonara pelo belo José, filho de Raimundo, potencial inimigo do seu pai, era correspondida pelo rapaz com igual ou maior intensidade. Um parêntesis: O leitor poderá achar que o narrador dessa história é desprovido de imaginação e repete o mesmo enredo, comum a tantos outros casos de amor de famílias inimigas, cujo emblema maior foi escrito por Shekspeare em Romeu e Julieta. Não!... O meio e o proibido constroem os grandes romances ou as grandes tragédias. Numa cidadezinha remota, sem opção significativa, torna-se comum as almas afins se atraírem motivadas pelas circunstâncias do meio e do proibido e isso ocorrerá em todos os tempos e em qualquer sociedade, desde a sociedade simples à sociedade mais civilizada. Resta ao narrador ser fiel aos fatos ocorridos, narrá-los com isenção, mesmo que sua história pareça repetida. Aos dezesseis anos de vida, desprendida, extrovertida, desenvolvida física e emocionalmente, despojada de preconceito, mais mulher do que menina, Marina estava alguns anos além do seu tempo. Não herdara a baixa estatura da mãe, mas o físico longilíneo da família paterna. Engajada nos eventos religiosos, políticos, nas festas juninas, fundou o primeiro bloco feminino carnavalesco de Nova Acácia, intitulado: “AS NOVIÇAS DA FOLIA”, influenciada pelos programas afins da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, naquela época, principal emissora de difusão do país. Ela não fazia parte da geração de moças medrosas que namoravam às escondidas, tradição culturalmente alimentada pela resistência, preconceito e ignorância de muitos pais, principalmente, porque a mulher naquela época, era desde o nascimento, um ser inferior, muito protegido, mas desprovido de cidadania e independência. Marina não se fez contida, flertou com o filho de Raimundo, o bonito José, inimigo político do seu pai, sem se incomodar com os comentários maledicentes, menos ainda, com a reação de sua família. Não demorou que os fofoqueiros de plantão, fizessem chegar até Artur, o namorico de sua primogênita. A sua experiência de vida e a sua diplomacia prática contribuíram para que ele não aprovasse ou aprovasse a conduta de sua filha, não falou nem grunhiu, achou de bom alvitre não proibir o bem querer de sua filha, urdiu a necessidade de Marina realizar o seu sonho de médica e os irmãos seguirem o mesmo caminho na cidade de Salvador. Antes da viagem, fez José Jurar amor eterno, de aguardá-la como médica e nas férias, viria passar em Nova Acácia, gozar a felicidade dos amantes. Este idílio durou menos de dois anos. José criado com leite de cabra, macho do sertão, enrabichou-se e emprenhou uma linda moça, filha mais nova e mimo de um ignorante fazendeiro, para não morrer crivado de balas por um pistoleiro de tocaia e jogado os quibas para os urubus, jurou para o juiz e para o padre, cuidar na alegria e na dor, de sua amada e mulher. Marina não se deitou na cama da decepção amorosa, ferveu-lhe o sangue nas veias, teve vontade de dar uma lição no infiel namorado, mas achou conveniente dar tempo ao tempo, se ele não a esperou, é que não era digno do seu amor e de sua paixão, um mês depois, desfilou de mãos dadas com um colega de curso nas ruas de Nova Acácia, um desafio aos costumes e às tradições arraigadas daquela gente e às paixões contidas de José. Artur não se continha de felicidade!... V O carro de boi É evidente que daqui alguns anos, o carro de boi só será encontrado nos museus, porém, ainda é de grande valia para o transporte de carga em alguns rincões do nosso país. Naquela época, em Nova Acácia, o carro de boi era mais imprescindível do que os caminhões e camionetes, pois em alguns trechos não eram estradas, eram caminhos, cortados por sulcos e valetas. O verdadeiro Sincrat, quando menino, conhecia bem o carro de boi, em sua terra natal, no interior pernambucano, nos engenhos e nas fazendas, o carro de boi era o único meio de transporte de carga, portanto, seu velho conhecido, mas não se fartava ainda hoje, de apreciar o eixo cantador do carro de boi, tendo como pano de fundo, voz do carreiro. É um canto mágico, às vezes, tem-se a impressão que é um canto sofrido, vozes de carreiros e bois desencarnados, chorando os seus dramas, suas saudades; doutras vezes, tem-se a impressão que é um canto jovem, um canto de prazer, um orgasmo melódico e por detrás, a voz de um jovem e rude carreiro dando o tom e guiando com maestria aqueles animais. Certa feita Sincrat bisbilhotou a opinião de um jovem carreiro e para sua surpresa, ele também ouvia no canto do carro de boi, versos que refletiam a alegria ou o drama de alguém: -Pade, trabaei cum um carro de Mané de Chica, qui si sucidou e paricia qui ele me dizia coisa qando o carro cantava!... Evidentemente, ele não iria endossar esdrúxulas superstições, mas reconhecia que cada pessoa poderia alimentar sua sensibilidade com o canto do carro de acordo sua percepção interior. Para Sincrat, aquele canto ecoava as lembranças de sua terra, o retorno à infância e juventude e às cantigas de bumba-meu-boi do interior pernambucano. O homem pensa que é fácil negar o passado, então, descobre essa impossibilidade, pois se ele não mexe com o passado, o passado não sai dentro de si, vez ou outra o cutuca para lhe dizer que se encontra ali... VI Mutirão social Não condenava o padre Torricelli, ele, certamente, teria que dançar conforme a música, porém, o culpava por ter alimentado ou não ter feito nada para erradicar as superstições daquela gente. Ele não mexera nos costumes e nas estruturas obsoletas daquela sociedade simples, onde permeava a ignorância e o fanatismo religioso, aonde os jovens não iam à escola, em sua maioria, onde os pais não colocavam as filhas para aprender ler e escrever para não usá-las em namoro, onde as doenças por falta de higiene ainda proliferavam, onde tudo de ruim que ocorria era castigo divino, teria que se imprimir além das ações religiosas, ações educativas com o objetivo de abrir a mente dos incautos, daquelas pessoas recalcitrantes às mudanças e ao progresso. Dois meses depois de investido de pároco, Sincrat sentiu que teria que trabalhar nessa linha, não adiantava chorar pelo leite derramado, o tempo de Torricelli era outro, a história de sua vida o isentava de falta de ação, é que o velho padre teve que trabalhar de acordo os costumes e as tradições do lugar, mexer em vespeiros fora de época não se aconselha, agora, com uma geração mais nova e novos tempos, cabia-lhe completar o que faltou no trabalho do seu antecessor: pensou num mutirão social. Foi um pandemônio quando Sincrat levou essa idéia para os paroquianos. A maioria queria entender o que viria ser: “mutirão social”. Os mais sabidos conheciam o significado dos termos, desconheciam o processo, os lavradores já usavam o mutirão como “auxílio” no roçado, no plantio, na colheita ou mesmo na queima, onde todos trabalhavam um dia, revezando, em benefício de um lavrador, em troca o beneficiado fazia uma grande feijoada ou fatada, acompanhada de bebida alcoólica para os homens e suco para as mulheres. O “auxilio” também se fazia na construção de casas de taipas ou tijolos maciços. Porém, tanto os mais sabidos como os menos sabidos, o “auxílio” e o “mutirão social” não tinham nada em comum, o que provocou uma confusão inicial. Tudo foi esclarecido. Sincrat com jeito, pediu que todos se reacomodassem em seus lugares e o escutasse: -Os senhores não usam o “auxílio” e o “adjutório” na lavoura? – todos foram uníssonos na resposta. -Então, “mutirão social” é um “auxílio”, é um “adjutório”, que todos fazem não em benefício de um, mas muitos em benefício de todos!... – continuou: -Nós vamos convidar as autoridades locais, os médicos de homem, os médicos de mulher, os médicos clínicos, os dentistas, os advogados, os barbeiros, as cabeleireiras, os doadores de sangue, as costureiras, as bordadeiras, os carpinteiros, os marceneiros, professores de ciência para palestras de noções de higiene e demais profissionais para prestarem voluntariamente, um dia de serviço à comunidade, conforme sua aptidão: - completou: -Se alguém precisa extrair um dente, um dos organizadores do mutirão o encaminhará ao dentista, se uma mulher precisa de uma consulta médica, ela será encaminhada para o médico da especialidade, se alguém precisa de um conserto de carapina em sua casa, um profissional será encaminhado para solução do problema, se alguém está cabeludo ou barbudo, o barbeiro irá dar-lhe um jeito!... - um vozeirão rompe o silêncio: -Onde o senhor vai arranjar médico para atender tanta gente?... -Nós temos dois médicos aqui em Nova Acácia, os demais virão dos municípios circunvizinhos!... – E esclareceu: -Senhores, o mutirão ocorrerá daqui um mês e num final de semana. Acredito na solidariedade dos nossos profissionais! – todos assentiram. O mutirão foi um sucesso pelo atendimento e mais ainda pelo clima de solidariedade, participação e desprendimento de todos os munícipes de Nova Acácia e cidades circunvizinhas. Sincrat conseguiu levar mais 05 (cinco) médicos, alguns enfermeiros, dentistas e outros profissionais doutras cidades para somar à prata da casa. Conseguiu também, que os escrivões dos cartórios das cidades irmãs, expedissem mais de uma centena de registros de nascimento. E, ele, Sincrat, fizesse o primeiro casamento coletivo ali com mais de cinqüenta pessoas. O prefeito que manteve certa reserva no decorrer da preparação do mutirão, sempre com um pé atrás, preocupado mais em manter uma boa relação com o padre, em não contrariá-lo, consequentemente, não contrariar a igreja Católica, não poupava elogios ao pároco, no final do evento. Mais de 3000 pessoas foram atendidas, um terço da população, todos foram engajados nessa ação solidária, do moço ao velho, da neta à avó, da filha caçula à filha mais velha, todos foram, concomitante, sujeitos passivos e ativos, todos serviram e foram servidos, foi uma festa solidária e uma lição de cidadania que Sincrat proporcionou àquela gente. O mutirão também serviu para quebrar preconceitos, alguns paradigmas, alguns modelos do atraso, a exemplo de mulher se consultar somente com médica e homem não fazer exame de homem. Algumas mulheres fizeram exames ginecológicos e alguns homens se submeteram ao exame de próstata. Rei morto, rei posto, depois do mutirão, a população novo-acaciana, guardou na memória, no passado, o santo homem Torricelli e elegeu definitivamente, o seu novo pastor, o seu novo pai espiritual, o homem e suas idéias: o padre secular José Maria Belchior Sincrat, padre Sincrat!... VII A escola Tolo é o homem que se deita nos louros de uma vitória, a vida é uma sucessão de vitórias. A derrota não é um mal em si, é um aprendizado para vitória. Quantos vitoriosos o seu principal aprendizado inicial foi o fracasso? Inúmeros!... Se não tem persistência e determinação naquilo que se persegue jamais se é um vencedor. O sucesso não cai dos céus, tem que ser construído, Deus nos deu esta lição: “... faze que te ajudarei”. Sincrat não quis degustar a vitória do seu exitoso evento. Não deixou baixar a poeira do sucesso, atacou um problema que achou imprescindível para o progresso e tirar do atraso aquela comunidade: a escola. Descobriu que a maioria absoluta das crianças e jovens não iam à escola. O pretexto mais ouvido, é que eles precisavam trabalhar para ajudar nas despesas da casa, em relação às meninas, para que elas não usassem a leitura e a escrita no namoro... Inteligente, inato diplomata, Sincrat percebeu que não poderia promover essas mudanças de um dia pra noite, havia ali uma cultura de costumes arraigados e uma aceitação natural, um consenso de normalidade daqueles costumes, por isso, não foi com sede ao pote, visitou pouco e pouco, cada pai, cada mãe, que tinha o seu filho fora da escola, convencendo-o da necessidade da instrução, da educação. Quando Sincrat começou sua campanha de inserção do menino na escola, havia em Nova Acácia, três escolas municipais primárias, de freqüência precária. Se algum estudioso chegasse ao ginásio, teria que fazê-lo no ginásio estadual de Acácia, privilégio cultura e educacional daquelas redondezas. A conversa com os pais era difícil, alguns pais apresentavam razões contundentes. Famílias numerosas, os rendimentos dos filhos somavam-se às parcas receitas dos pais, Sincrat não ignorava a perversa equação: filhos mais pais é igual sobrevivência familiar. Porém, entendia que esses rendimentos não resolviam a pobreza, o estado de necessidade perene daquela gente, resolviam algumas necessidades imediatas, por isto, ele apelava para o sentimento natural paterno de desejar para o filho o melhor, aquilo que a vida lhe negou e ia provocando mudança: -Há quanto trabalha na roça José? -Padre, eu tenho 35 ano de idade (parecia ter mais de 40), meu pai me levava pra roça desde criancinha, vivi na roça sempre!... -Estudou? -Fiz o 4ª. série primária e não troco pelos ginásios que conheço! – menoscabou. -Concordo. O ensino de hoje, não é igual ao de antigamente... – questionou: -E os seus filhos estão na escola? -Padre, os dois moleques mais velhos fizeram até 3ª. série, agora, eles me ajudam na lavoura. A menina de 12 anos também só estudou até 3ª. série, a mãe tirou pra ajudar na casa e tem moleques que ainda não foram para escola, o mais novo não se conta que tem 3 aninhos!... – Sincrat estava confuso com tanto filho... -Afinal, são quantos filhos? -Oito! -Oito?! -Sim padre, eu e Maria casamos muito novos, eu com 19 anos de idade e ela com 15 anos! -Por que razão você não continuou os estudos? -Necessidade aqui é lei, o meu pai disse que estava na hora de lhe ajudar!... –Sincrat provocou: -Com essa inteligência que Deus lhe deu, se você continuasse estudando, hoje, estaria num bom emprego público ou um doutor!... -Tem razão padre, eu era o primeiro da turma, mas o meu pai não tinha outro jeito... – Sincrat o interrompeu: -Será que não havia outro jeito? Se o seu pai tivesse encaminhado você e os seus irmãos para escola, ele não teria os seus dias finais mais confortáveis? Ele deixou o quê? – José assimilava cada pergunta. -O senhor tem razão! O meu pai não morreu na esmola por nossa causa, mesmo assim, coitado, passou muitas dificuldades... – José estava triste, Sincrat aproveitou: -É isso que você quer? -O quê? -Quê os seus filhos passem pelo mesmo sofrimento? Vejam o pai, bom e trabalhador, se acabar sofrendo e passando necessidade? Acho que não! -Padre, sozinho, eu irei sustentar e vestir 10 pessoas? –pediu ajuda à mulher pela primeira vez: -Maria, diga ao padre a ajuda desses meninos!... –Maria surpreendeu-lhe: -O padre está com a razão! – foi só o que falou. -O padre tem razão, eu sei, mas como irei sustentar a casa, sozinho na roça? – Sincrat aproveitou: -Racionalizar o trabalho... -Racionalizar?... -Sim! -Não estou entendendo padre, me desculpe... -Racionalizar José, é planejar, é refletir, é tornar uma coisa mais eficiente, sem prejuízo da idéia principal... – José brincou: -As pessoas dizem que padre estuda mais do que doutor, é verdade? O senhor fala tanta coisa que eu fico matutando pra entender... –Sincrat foi modesto: -O padre não é mais do que o doutor, eu diria que cada macaco em seu galho: o doutor cuida do corpo e o padre cuida da alma!... -Então padre, troque em miúdo racionalizar! -Vou lhe fazer algumas sugestões, quer ouvi-las? -Sou todo ouvido!... Sincrat fez-lhe várias sugestões: que os meninos trabalhassem em turnos alternados, pois todos podiam freqüentar a escola sem prejuízo na lavoura, que suas filhas ajudassem à mãe no afazeres da casa, em turnos diferentes, que sua paróquia se comprometeria ajudá-lo no fardamento, que ele, José e sua mulher, poderiam freqüentar a escola, que estava criando um curso noturno numa casa cedida pela prefeitura para os adultos etc. Para surpresa de Sincrat, um mês depois, José e a família estavam matriculados, conforme suas sugestões e José era um dos destaques do curso noturno para adulto. Foi assim que Sincrat, com jeito e muita conversa, levou para escola, a maioria absoluta de adultos, jovens e crianças de Nova Acácia. VIII Boi-bumbá Acho que foi São Paulo que disse que a fé, somente, é vazia, a fé é justificada pela obra. Se o escritor estiver dizendo asneira, que os doutos e os biógrafos de São Paulo perdoem esse ignorante pelo inverídico comentário exegético, mas no caso de Sincrat, é verídico, ele era mais ação do que doutrina religiosa. Não que se duvide de sua fé, de sua santidade ou da falta de apego à palavra de Deus, mas saiu do púlpito, o homem era uma máquina empreendedora: mexia na educação, fez mutirão, construía, reformava, enfiava o seu bedelho em tudo quanto era lugar para que a população de Nova Acácia saísse do atraso e vivesse novos tempos. Para Agnelo Torricelli, as festas folclóricas, os arrasta-pés, os folguedos, não fediam nem cheiravam, aliás, elas fediam mais do que cheiravam... Na época de Torricelli, essas festas eram pálidas, sem entusiasmo, eram feitas pela ala jovem, pelos rebeldes e pelos católicos de nascimento que só pisavam na igreja em batizado ou em casamento. Agora, com Sincrat, as festas de bumba-meu-boi, juninas, de São Pedro, de Santo Antônio e até as pagãs, eram festas movidas pelo entusiasmo, pela alegria, sem culpa, sem pecado... Faz-se jus aqui registrar que a festa de bumba-meu-boi era a mais acolhida pela população de Nova Acácia e o novo pároco era o principal responsável por tanto aconchego, pois cresceu assistindo a participação apaixonada, fanática, dos seus pais e parentes na festa do boi. Trazida de Portugal pelos jesuítas, a festa do boi-bumbá, boi-de-reis, boi-de-jacá, bumba-meu-boi e outros nomes, de acordo a região, servia para que os jesuítas educassem os índios, os negros e os nativos, através da representação de comédia, de tragédia e de drama, valores religiosos e morais significativos. Por isso, Sincrat estimulava e organizava os grupos folclóricos com o objetivo de levar àquela gente simples e esquecida do mundo, mensagens educativas, sátiras, reflexão e auto-estima. E, isso só foi possível, através da competição. Não de uma competição apaixonada, irracional, mas de uma competição saudável em que os grupos eram julgados pelos seus representantes e vencia o grupo mais organizado, o grupo em que sua mensagem e o seu tema calassem fundo na alma daquela população singular, esquecida do resto do mundo. Nas festas juninas, as quadrilhas disputavam à primazia da dança folclórica e sua maior valia consistia em promover alegria e integração àquela comunidade por semanas, desde o ensaio às apresentações desses grupos na praça da igreja. As festas de reis, boi-bumbá, São Pedro, Santo Antônio, São José, Natal, Ano Novo, eram feitas pelos mais velhos, representantes fiéis das velhas tradições, dos costumes engessados, enquanto que as festas de carnaval e os folguedos, os arrasta-pés nos finais de semana, eram as festas organizadas e feitas pelos mais jovens, pelas moças, pelas jovens senhoras, pelos jovens senhores, segmento da sociedade mais receptivo às mudanças de Sincrat. Enfim, a população de Nova Acácia ficou menos beata, menos carola, menos papa-hóstia, menos papa-missa, menos papa-santo, porém, mais desprendida, mais racional, mais interativa, mais solidária, menos atrasada e mais feliz. IX Baratas-de-igreja “Seu” Manduca e “Dona” Ester não saiam praticamente da igreja por justificáveis motivos: além de fanáticos católicos, papa-hóstias, baratas-de-igreja, ele vivia lá de favor desde o antigo pároco, comia e vestia às expensas da comunidade católica e quando em vez o pároco botava um dinheirinho no seu bolso; Ester, pensionista de um oficial do Exército que tinha morrido numa missão de rotina nas fronteiras do Brasil com a Venezuela, morava em frente á praça da igreja, sem filhos, sem o que fazer, volta e meia, ia cuidar da limpeza da igreja, deixava tudo areado para missa do dia subseqüente. Havia uns mexericos por debaixo dos panos, às escondidas, que os dois tinham um caso de amor. Nunca ninguém os flagrou em lascívia, em ato suspeito... Se havia alguma coisa entre eles, além de uma amizade singela, amigos na fé, essa hipocrisia os qualificaria para o prêmio de cinema de dissimulação e de fingimento. Armando Sales de Sá, “Seu” Manduca, descendia de uma abastada família do Sul do Brasil e tinha vindo parar naquele cafundó-de-judas por ter flagrado sua mulher com o irmão mais novo, segundo o falatório dos donos da vida alheia, dos desocupados da praça, dos freqüentadores de botequim e de algumas pessoas de pseudo-importância do lugar. Conjeturas e mais conjeturas, suposições e mais suposições, pessoalmente, “Seu” Manduca nunca disse a ninguém donde vinha nem pra onde ia. Calado, monossilábico, era amigo do saudoso padre Torricelli e amicíssimo do padre Sincrat, com este, ainda conversava, trocava dois dedos de prosa, mesmo assim, quando ambos estavam a sós. Sincrat gostava muito de “Seu” Manduca e Manduca o amava e quem quisesse tê-lo como desafeto, bastaria triscá-lo no padre com palavras um pouco simpáticas, para que ele fechasse uma cara de bicho e saísse resmungando. Não era má pessoa, todos em Nova Acácia, tinham-no com apreço. Não falava mal de ninguém, não se envolvia com a vida dos outros, sua vida consistia em ajudar o pároco nos trabalhos físicos da igreja, a exemplo de consertar uma telha quebrada, consertar o forro, trazer os bancos limpos e envernizados e no final de ano, deixar a igreja pintada para as festividades de Natal e Ano-novo. Carpinteiro e pedreiro de mancheia, ele não trabalhava para ninguém em particular, parece que tinha feito algum voto de pobreza, dispensava propostas tentadoras, se homiziava voluntariamente na casa da paróquia e contentava-se com o que Sincrat lhe pudesse proporcionar. Aos domingos e nos dias de festa, ele lá estava todo de branco, sapato preto lustrado, camisa de manga comprida e calça bem engomada, escanhoado, ajudando o padre na hora da missa, era a principal voz do hino de louvor, portava-se no jeito e na dignidade como um nobre. Ester e Manduca não eram imprescindíveis, insubstituíveis, mas eram necessários para o serviço da paróquia, por isto, o sacerdote anterior e o atual, não dispensavam os seus préstimos, principalmente, nos dias de festa e finais de semana, quando a freqüência dos fiéis quadruplicava. Quando Sincrat assumiu a paróquia, os desafetos gratuitos de ambos tentaram indispor-lhes com o novo pároco. A desafeta mais direta, mais desabrida, menos hipócrita e mais franca, foi sem dúvida, Dona Candinha, uma beata pequenina, octogenária, mas de uma língua de verruma, que se proclamava defensora das virtudes e dos bons costumes: -Padre Sincrat, dê um jeito na sem-vergonhice desses dois fariseus! -Filha, eu não tenho autoridade para condenar e julgar o meu semelhante, eu sou um humilde servo de Jesus Cristo! -O senhor vai permitir que eles continuem na fornicação!? – a velha foi ríspida. -Filha, como administrador da paróquia, como homem, eu tomarei providência desde que haja prova e flagrante, não irei tomar providência embasado em mexericos, bisbilhotices e fofocas. A senhora prova? Se a senhora provar, irei chamar o “Seu” Manduca e “Dona” Ester e acabar com essa sem-vergonhice!... – a velha deu uma rabanada e passou duas ou três semanas com a cara torcida para o pároco. Ele foi feliz em sua decisão, ao longo do tempo percebeu que tudo não passava de inveja, de gente que não se sente bem com felicidade alheia. Nunca observou nenhum deslize, nenhuma falta de respeito de Ester e Manduca no trabalho da paróquia, se existia algum affair, algum namoro, não se dava ali, mas fora dali, e lá fora, não era da conta de ninguém, menos ainda de Sincrat, pois ambos eram maiores, desimpedidos e responsáveis pelos seus atos. X Segredo ameaçado Aquele rapaz, alto e franzino, não tirava os olhos do padre Sincrat durante a missa. Não lhe parecia conhecido, mas parecia conhecê-lo. Não era um olhar disfarçado, um olhar simpático, de enlevo, de prazer, era um olhar de cobrança. Lia-se no seu rosto certo cinismo que estava deixando o padre intrigado... Já o tinha visto ali algumas vezes, sempre no mesmo banco perscrutando-lhe a alma. Não olhava para o altar, olhava direta e insistentemente para Sincrat, causando-lhe desconforto e curiosidade, o sacerdote não teve outra saída, senão, inquiri-lo discretamente, no término da cerimônia: -Filho, quer falar comigo? -Sim! -Fique à vontade! -Em particular, sim? -Acompanhe-me!... Sincrat tinha reformado a sacristia, antes um lugar mal iluminado, sem ventilação, com os objetos de culto a esmo, sem privacidade, cedeu lugar a um ambiente bem ventilado e bem iluminado, com sanitário social, uma sala privativa, misto de biblioteca, gabinete de trabalho e o lugar predileto do padre para tirar uma soneca depois do almoço ou fazer suas leituras, então, redigir os seus textos religiosos. Sua sala de trabalho tinha sido estruturada para atender às suas necessidades, a exemplo de estantes para os livros, armários para guardar os paramentos sacerdotais, utensílios, banheiro completo e na entrada, uma ante-sala, separada por uma divisória envidraçada, onde, ele atendia os seus paroquianos. Foi nesta ante-sala que se deu o primeiro encontro dele com um tal Beto, o rapaz que não lhe despregava os olhos na hora da missa há uns três ou quatro domingos consecutivos: -Qual o problema meu filho? – o rapaz estendeu-lhe a mão: -Eu sou José Roberto Filho, “Beto”, seu criado!... -Que lhe traz aqui, Beto? -Um segredo de cinco anos... – sua fala saiu inaudível: -Filho, eu não entendi!... -Um segredo! -Não seria melhor no confessionário?... -O segredo é nosso!... – o seu sexto sentido alertou-lhe: “perigo!”, porém, continuou firme: -Nosso?... -Sim! – Sincrat pediu a Deus toda paciência do mundo para não perder as estribeiras: -Filho, vá direto ao assunto! -Lembra-se do acidente? -Quê acidente? -Quando o senhor trazia o novo padre para Nova Acácia!... -O novo padre? Eu que estava chegando à Nova Acácia e o pobre do taxista foi vítima do mau tempo!... – falou sem muita convicção... -Mentira!!! –Sincrat não se conteve: -Quem é o senhor para me chamar de mentiroso? Desembuche!!! – o padre tinha sido substituído por Mário Silva e o rapaz percebeu: -Eis aí o Mário Silva que ressuscita!... – continuou: -O senhor é o taxista Mário Silva que a pedido do padre, na agonia da morte, o substituiu, eu estava lá, presenciei tudo!... – Sincrat não fraquejou: -Quê história é essa? O senhor está me chamando de embusteiro, de farsante... Aonde o senhor quer chegar com sua maldade? -Um acordo!... -Acordo! Quê acordo? -Dez por cento das ofertas! – se não fosse pela gravidade do caso, Sincrat o teria botado pra fora da sala aos tabefes, porém, não deixou barato: -Ah, ah, ah... além de caluniador, de mentiroso, tu és um chantagista, quer me extorquir?... Saia da minha sala, já! – o rapaz saiu com a calma dos cínicos, mas antes de cruzar a soleira da porta, ameaçou: -Cinco anos esperei essa oportunidade, um mês a mais ou a menos, é de somenos importância, é o tempo que tem pra pensar, senão, irei lhe desmascarar quando a igreja estiver no seu dia mais lotada!... Sincrat estava pálido, pensativo, quando do nada surgiu Manduca, preocupado com o seu bem estar: -Tudo bem, padre? -Tudo... -Chegou agora, “Seu” Manduca? -Sim, padre Sincrat! – mentiu. -Conhece um rapaz alto, franzino, novato aqui na igreja, que há três ou quatro semanas fica sentado no banco da frente com um olho pra missa e o outro para o padre? -Acho que é o filho de “Betão”!... -É... deve ser... é o “Beto”, não é? -Sim! Como o senhor soube o seu nome? -Ele me procurou para solucionar um problema!... – sem esperar o interlocutor, como se falasse pra si, continuou: -O inimigo quer interromper a minha missão “Seu” Manduca, mas lá em Atos dos Apóstolos (5:38 e 39), Jesus Cristo através de Lucas avisa-nos: “... se esta obra é de homens, não triunfará. Mas se é de Deus, não a combatais, pois estareis combatendo o próprio Deus.” Sinto que ainda não terminei a minha missão!... -Quê é isso padre Sincrat? O senhor ainda é jovem, tem muita coisa para realizar! – completou: -O Beto está metido nisso?... – não esperou a resposta: -Ninguém lhe dá ouvido! Aquilo é um crápula, desde menino que apronta nessas redondezas, passou um tempo foragido daqui, depois de matar o pai de desgosto, agora, o infeliz volta, parecendo gente, todo arrumado, acho que deu o golpe em algum pobre de meu Deus por aí. É ele que quer atrapalhar sua missão, padre Sincrat? – o padre atenuou: -Não, “Seu” Manduca, pelo que o senhor acabou de falar, o rapaz não tem estofo para me atrapalhar, estou falando de um pressentimento esquisito que me persegue ultimamente, alguém querendo abortar a minha missão!... -Eu também tenho esses pressentimentos ruins, mas Jesus Cristo me dar força para continuar! -Nada melhor do que a oração e o trabalho para desfazer as nossas fraquezas morais! – observou Sincrat. Porém, dali em diante não era mais o mesmo Sincrat. Andava cabisbaixo, absorto em seus pensamentos, às vezes, fechava-se em seu gabinete de trabalho e ficava horas lá trancado. O Beto não perdia uma missa, virou ratazana de igreja... Antes ia somente aos domingos, agora, não perdia um culto religioso, qualquer que fosse o dia ou o turno, ia até às Horas Marianas. Sempre com a mesma postura: sentava-se em frente ao altar e fuzilava com os olhos, o indefeso Sincrat. Olhando-o de soslaio, de esguelha, o velho Manduca media o pérfido Beto e repetia baixinho a oração do Almirante Thomas Charles Hart: -Senhor, dê-nos força para aceitar com serenidade tudo que não pode ser mudado. Dê-nos coragem para mudar o que pode e deve ser mudado... A preocupação de Sincrat desapareceu uma semana antes do prazo que Beto tinha lhe dado, o rapaz foi encontrado morto numa das ruas de Nova Acácia. Não que Beto não tivesse um ror de pessoas que não gostavam dele e mais alguns inimigos figadais de acréscimo, mas é que o rapaz teve uma morte estranha, não havia no seu corpo nenhuma marca de violência física, nenhum ferimento de faca, bala, pau, pedra, com exceção da face roxeada, parecia que dormia. Sincrat voltou a sorrir como dantes e falava em novos projetos. Não teceu nenhum comentário público sobre a morte de Beto além de um formal pesar para conformar D. Ester e Manduca que embora não gostassem nem desgostassem do rapaz, eles tinham sido amicíssimos do seu pai e ficaram solidários à memória do amigo: -Jesus Cristo perdoe-lhe os pecados e o receba em sua glória!... XI Quer ser bom... Há um provérbio popular que diz: “Quer ser bom? Morra!“, a sabedoria popular parece não ter limite e ser a única fonte da verdade e justifica-se pela reação daquela comunidade simples com a morte prematura de Beto. Embora ele não valesse um real de mel coado, a morte apagou-lhe todos os defeitos e ele passou ser vítima da vilania de alguém, depois que a polícia e o médico atestaram que não tinha sido uma morte natural, mas uma morte por asfixia de alguém muito mais forte, que o enlaçou e o sufocou por detrás até os estertores da morte. O assassino não tinha deixado marca aparente, mas num exame amiúde, o médico-legista descobriu que as cartilagens do pomo-de-adão tinham sido esmagadas causando-lhe o óbito. Talvez, o sentimento de pesar do povo não fosse Beto, mas o pavor coletivo inconsciente, de ter em seu seio um assassino meticuloso, obscuro, que cometeu um crime na calada da noite quase sem deixar rastro e hipótese de autoria. Aquela gente simples não estava acostumada à violência, não obstante ser uma gente forte, destemida, essa fortaleza e esse destempero eram usados na lida do gado e na lida do campo. Afora alguns assassinatos políticos cometidos no passado pelos donos das terras, a maioria dos habitantes de Nova Acácia era de natureza ordeira, pacífica. O “Seu” Manduca e D. Ester comungavam com a minoria: Beto era um escroque social. Eles não iriam santificá-lo depois de morto, que ele fosse prestar conta de suas maldades nos quintos do inferno, se não fosse honrar a memória do seu pai, eles não teriam se dado ao trabalho de ter acompanhado o féretro e ter lhe jogado terra na cara. Talvez, ele não tivesse merecido uma morte prematura, no limiar da juventude, morto pela goela, como se mata frango, mas era sabido que por onde passava, ele deixava rastro de maldade, de malquerença e sua freqüência, ultimamente, à igreja, deixava os seus conhecidos de orelha em pé perguntando a si o motivo dessa mudança, porém, eles não sabiam que o motivo dessa mudança chamava-se: Mário Silva, não, digo: padre Sincrat!... XII D. Candinha e os pimpolhos Uma cena romântica, transformada numa tragédia, num infortúnio, graças à ranzinza D. Candinha que flagrou os pimpolhos Joãozinho e Ana aos beijos e às agarrações num cantinho escondido da sacristia. A velha tinha um faro canino para descobrir os malfeitos dos outros, as mazelas pessoais que cada um esconde e se não prejudicam outrem, essas mazelas não são da conta de ninguém, todavia, para a velha Candinha, o malfeito é da conta de todo mundo. Ela já tinha tido uns arranca-rabos com Manduca e Ester, chegou arranhar também com Sincrat, mas com medo de uma maldição do padre, suavizou a contenda, o deixou em paz. Os pimpolhos estavam nos amassos, esquecidos do mundo, o fogo queimando suas entranhas de 13 e 15 anos de idade, aos beijos de língua enrolada às carícias da paixão juvenil, quando de repente, uma voz engasgada pelo tempo, uma voz de censura e admoestação, desperta Joãzinho e Ana para realidade dos adultos e a hipócrita realidade dos adultos decrépitos: -Seus amaldiçoados, respeitem a casa de Deus!!! – e os ameaçou com o fogo do inferno e as penas do purgatório, concluiu que ia comunicar aos seus pais, a sem-vergonhice e a imoralidade, quando surge o padre Sincrat: -Dona Candinha!... – continuou: -Foi o quê? -Pergunte a esses dois que estavam na maior safadeza! – Ana, levada da breca, mais dissimulada que Capitu de Bentinho, deixou a velha Candinha sem jeito, chorosa: -Pa...dre, eu... es... tava aqui ensaiando a peça de Shekspeare que o Senhor mandou e... Do...na Can... di...nha... – desabou a chorar. -Mas Dona Candinha... – a velha estava embasbacada, em dúvida, preocupada por ter cometido alguma injustiça e assustada pelo fingimento da descarada, mas não se deu por vencida: -Peça?... Peça da molecagem!!! – Sincrat intercedeu: -Dona Candinha, Jesus Cristo deixou como lição não se fazer juízo do próximo, não se julgar, menos ainda condenar pela aparência, eu não sei quem está com a razão, apenas, posso lhe assegurar que Joãozinho e Aninha vão representar no teatrinho que estamos armando para missa do próximo domingo! - a velha deu uma rabanada e foi embora. “In dúbio pro réu”, é o princípio do Direito que deixa os juízes dormirem com o sono dos justos. Não se pode dizer a mesma coisa do “lava as mãos” usado por Pôncio Pilatos para deixar Jesus a mercê dos seus inimigos. O “lava as mãos” é uma covardia, medo de responsabilidade, transfere para o outro aquilo que é de sua alçada, mas não se exime do sentimento de culpa e a história registra que pouco tempo depois, Pôncio Pilatos caiu em desgraça política por ter agradado ao rei Herodes e suicidou-se. Candinha não lavou as mãos, na dúvida, preferiu não levar adiante sua missão moralista de comunicar aos pais dos pimpolhos o que acreditava ter visto, não seria obtusa, não correria o risco do enfrentamento com Sincrat, os paroquianos não acreditariam nela mais do que no padre, se ele confirmou a história do ensaio da peça de Shekspeare, que ele ficasse com o ônus do pecado se estivesse faltando com a verdade!... Sincrat tinha absorvido a filosofia cristã da compreensão e do perdão, não tinha certeza da traquinagem do seu coroinha com a viçosa Ana, mesmo que fosse verdade, não atiraria a primeira pedra, ademais, a paixão é apanágio dos ardentes e jovens corações. Joãozinho, moleque taludo, ficou sem ação quando o padre chegou ao final da admoestação de Dona Candinha. Não era bobo, de bobo só tinha a cara e o jeito de andar, porém, não sabia mentir ou representar tão bem quanto Ana. Não conhecia sua presença de espírito, o seu lado artístico... Não se comprometeu, não disse o que estava fazendo nem o que não estava fazendo, preferiu que as circunstâncias falassem por si e Ana por ambos. XIII A sonsa Ele era desabrido, brincalhão, gozador, amigo, prestativo, carismático, principal negociante do varejo de Nova Acácia. Ele era tratado por criança, adulto e velho, por “Rocha”, mas no Batistério e no Registro estava assentado: Francisco de Assis Aguiar. Acredita-se que esse codinome foi atribuído ao fato de sua forte compleição e sua estatura bem acima da média dos homens do lugar. Porém, sua mulher, Jussara Feitosa Aguiar, conhecida por “Dona Juju”, morena bonita, apesar de ter parido e amamentado seis filhos, ganharia qualquer concurso de presunção e esnobismo que concorresse. Não tinha a popularidade do marido e não gozava de simpatia da população mais simples, suas amizades eram elitizadas, com exceção de Dona Candinha, fofoqueira e bajuladora de rico. Para Dona Candinha, sua amiga Juju possuía beleza e virtude raras. Pelo exercício da atividade sacerdotal, repositório de todos os segredos, Sincrat não lhe dispensava tratamento vip, ao contrário, tratava-lhe com certa reserva, sem intimidade, sem adulação, no estrito cumprimento do dever religioso, enquanto o seu marido Rocha, o sacerdote lhe dispensava dois dedos de prosa e intimidade, principalmente, quando ia lhe pedir ajuda para algum empreendimento da paróquia, ele além da doação se desmanchava em elogios: -Padre, pode mexer em minha burra quantas vezes quiser, o Senhor buliu na saúde, na educação e noutras coisas, melhorando um bocado a nossa terrinha!... – dava uma gostosa gargalhada e acrescentava: -Eu gostaria de vê-lo padre prefeito! -Sangue de Cristo tem poder, meu amigo Rocha! -A História diz que o padre Feijó foi um exímio governante! -Rocha, eu não tenho o dom da política. A minha política é Jesus Cristo! – concluía: -Gostaria de vê-lo prefeito, Rocha! -O Senhor votaria em mim, padre? –Sincrat retribuiu os elogios: -Além de votar, oraria para que isso acontecesse, tu és um homem bom!... Por isso, não se entendia o tratamento cerimonioso, formal, que Sincrat dispensava à esposa do seu amigo Rocha quando ambos mantinham um relacionamento amistoso, afetuoso no dia-a-dia, não obstante eles exercessem atividades diferentes, cada um reconhecia e se preocupava com o sucesso do outro. Rocha reconhecia o trabalho evangélico, social, educativo e empreendedor do padre e Sincrat reconhecia o pioneirismo comercial e a popularidade de Rocha. Até a velha perspicácia Candinha já tinha dado com a língua nos dentes sobre essa indiferença: -O padre não simpatiza com D. Juju! -Tu não julgues para não seres julgada! – admoestou o padre. Caro leitor, supõe-se que a explicação dessa apatia do sacerdote com a esposa do Rocha, veio logo depois, com o escândalo e quase crime que por pouco não ocorreu, é que Juju foi flagrada com um estudante de direito em explícito ato sexual, deixando a baixa, a média e a alta sociedade de Nova Acácia, absorta, extasiada e incrédula por muitos dias, não se comentava outra coisa. Júlio César não era um galã de cinema, mas tinha o seu charme, principalmente, quando podia despejar sua lábia, sua sedução... Filho de um abastado fazendeiro do lugar, não necessitou de muito tempo para seduzir Juju e levá-la pra cama e pasme o leitor, nas fuças e nas enxergas de D. Candinha, que ainda lhe cedeu o leito e o conluio. Quando Júlio viu pela primeira vez Juju na igreja, apaixonou-se de cara. Quem o conhecia das noitadas e festas da capital, sabia que tudo não passaria de um rápido e passageiro deslumbramento. Apaixonava-se e prometia casamento às mulheres que cruzavam o seu caminho futilmente. Possuía um perigoso desvio de caráter: uma tara por mulheres casadas!... Não obstante ser um rapaz de família rica, gostava de freqüentar os baixos meretrícios da capital baiana. Não saía da Ladeira da Montanha, conhecido puteiro de Salvador em seus áureos tempos. Sua paixão era ardente e fugaz como fogo de palha e com Juju não seria diferente, embora lhe tivesse também jurado novas núpcias e amor eterno. Percebeu a dificuldade encontrá-la a sós, senão, na igreja ou na casa de D. Candinha. Na igreja, ele fez discretamente, as suas primeiras investidas, os seus primeiros elogios, as suas primeiras declarações, as suas primeiras juras, mas foi com D. Candinha, após encher-lhe de obséquios, presentes e dinheiro, que o jovem dom Juan da caatinga encontrou o atalho mais seguro para fornicar com Juju. Ninguém de bom senso seria capaz de suspeitar que por detrás daquelas visitas de Júlio César à virtuosa D. Candinha tivesse algo de podre se não fosse à máxima popular que não há crime perfeito, o crime sempre deixa rastro, o que existe é uma investigação imperfeita. Não houve investigação, algum abelhudo ou alguma abelhuda da vida alheia, desconfiou daquele movimento sincronizado na casa da velha Candinha que por algum tempo se repetia, às terças-feiras, às quartas-feiras e às quintas-feiras e passou observá-lo com mais cuidado e concluiu que cedo ainda, mais ou menos às 17:30 h, chegava Júlio César, pouco depois Juju, saindo logo depois D. Candinha, deixando os pombinhos sozinhos e uma hora depois, Juju saía e encontrava D. Candinha na missa que estava começando, enquanto Júlio César, satisfeita sua libido, deixava de fininho a casa da alcoviteira. Rocha, envolvido em seus vários negócios, juraria pelos santos dos céus e da terra que naqueles dias, sua santa esposa estaria reforçando sua fé na Igreja São José, que não deixava de ser verdade, se alguém não lhe esmiuçasse em carta anônima, o artifício usado pelos amantes e as circunstâncias da traição. Não quis acreditar na denúncia, sua mulher nunca lhe dera motivo de infidelidade, era uma boa mãe, tinha tudo e mais que desejava, vivia nababescamente, na cama era bem provida, então, não teria motivo para lhe trair e atribuiu tal infâmia e vilania à mente perturbada de algum desocupado. Porém, um dos bilhetes que recebeu foi a gota d´ água, mexeu com o seu lado de macho, mexeu com sua honra, mexeu-lhe o orgulho ferido e mexeu-lhe a alma e o seu ser: “Eu sei que você é cabrão e brocha, mas não pensei que fosse um corno manso, motivo de riso deboche de Nova-Acácia...” A.S. Rocha conhecia Júlio César, conhecia mais o seu pai, ambos possuíam alguns interesses comerciais comuns. Achava que a diferença de idade de sua esposa e o suposto amante deveria ser de uns 10 anos, quando ele e a mulher chegaram ali, o rapaz não passava de um moleque, será que Juju tivera coragem de lhe trair com um rapaz que ainda vivia às expensas do pai? Não! Juju não seria capaz de tamanho desatino e irresponsabilidade, comprometer marido e filhos por causa de um rapaz que há mais de 5 anos estudava Direito em Salvador e continuava estudante e a única distinção que adquirira foi a fama de boêmio e mulherengo. Essas cartas, esses bilhetes, deveriam ter o propósito de intrigá-lo com a mulher amada e mãe de seus filhos, que no começo de suas vidas conjugais tiveram de enfrentar várias dificuldades financeiras e na criação dos filhos, não seria agora que a tempestade passara e a bonança se fazia presente que Juju iria traí-lo, porém, como macho, como homem, provedor da casa, chefe de família, não poderia ser objeto de chacota daquela gente, teria que colocar tudo em pratos limpos e foi o que fez duas semanas depois do último bilhete. Naquele dia, Rocha levantou da cama com maus presságios, tivera uma noite péssima, desde que começou receber aquelas cartas, aqueles bilhetes anônimos, que não transava bem com sua mulher. Ele transava por hábito, ela transava por obrigação, não havia mais o mesmo fogo no rabo de Juju, volúpia desmedida, desejo incontido, tudo era pasmaceira, era tudo calculado e frio. Alguma coisa doía-lhe no peito, mas estava decidido, mesmo a contragosto, cheio de vergonha, que ia seguir à risca as instruções da carta e descobrir se as cartas eram verdadeiras ou elas não passavam de uma ignomínia, uma maledicência. Antes de ir para o trabalho, pediu que Juju que não o esperasse para o almoço, havia combinado com um amigo olhar uma fazenda que estava à venda e se tudo ocorresse, chegaria depois das 20: 00 h para o jantar: -Irei à tarde com José de Ana olhar uma fazendola, não espere por mim! – pegou o carro e saiu. Não seria justo chamá-lo de mentiroso, justo seria dizer que Rocha contou meia verdade, pois olhou uma roça com José de Ana e cedo ainda, estava de volta à cidade, não no seu carro, mas num táxi que estacionou acima uns 10 ou 15 metros da casa de Candinha. Liberou o taxista, fechou os vidros e ficou de vigia mais atento do que ficaria um felino esperando sua presa, ávido de fome. As coisas não ocorreram ao pé da letra das cartas-denúncia: primeiro chegou Juju; três quartos de hora depois, chegou Júlio César, devagar, olhando para todos os lados como se alguém o estivesse seguindo. A velha Candinha saiu muito mais cedo do que antes, não pra missa, mas para algum lugar distante dali, com o claro objetivo de deixá-los sozinhos. Trinta minutos de eternidade, foi o tempo que Rocha deu para flagrá-los nus na cama da velha. Teve vontade de matá-los, não o fez não que lhe faltasse coragem, não possuía instinto criminoso, sempre fora de paz, pacífico, mas fez pior: pegou sua mulher pelos cabelos com uma das mãos e enlaçou o pescoço do franzino e medroso Júlio César, que não se agüentava nas pernas e os arrastou à calçada, deixando-os a mercê do deboche e do achincalhamento do populacho que num instante surgiu e quando as vaias e os gritos tornaram-se estridentes, ele os soltou no meio do povo que lhes encheu de tabefes na cara e palmadas no traseiro nu de Juju e se Rocha não sacasse o revolver e desse alguns tiros para o alto, dispersando a turba, junto com a multidão dispersaram-se também Júlio César e Juju. Não foram salvos da humilhação, do deboche, mas lhes salvaram a vida pela intercessão daquele boníssimo coração que batia no peito de Rocha e de algumas pessoas comedidas. A maldição foi implacável com Júlio, Juju e Candinha. Soube-se algum tempo depois que Júlio César voltou para capital baiana e continuava torrando os cobres do pai na boemia. Garante que vai terminar o curso de Direito, muita gente torce o nariz de desdém. Juju ninguém sabe e ninguém viu. As mentes prodigiosas juram que ela foi deixada pelo amante num prostíbulo em Salvador. D. Candinha, desprezada de tudo e de todos, morreu três meses depois. Rocha foi aclamado por muita gente e censurado por alguns, inclusive, o pai do dom Juan: -Desculpe-me Rocha, traidores não merecem ser humilhados, merecem ser mortos! – Rocha minimizava: -Foi melhor assim amigo, eu não sujei as mãos de sangue, o seu filho está vivo e ainda não se encontrou e a desmiolada está pelo mundo, longe dos filhos, sofrendo de remorso e necessidade e eu estou junto dos amigos e dos filhos com a consciência em paz!... Para Sincrat, Rocha representava os novos tempos, onde a honra não se lava com sangue, mas com atitudes corretivas, que propiciem ao traiçoeiro, novas oportunidades de arrependimento e expiação dos pecados, que sua consciência seja o seu verdadeiro juiz, um censor rigoroso que não o deixe em paz o resto dos seus dias. Alguém afirmou: “a palavra voa, a escrita fica e o exemplo arrasta”, foi isso que ocorreu em Nova Acácia depois de Júlio César e Juju, não houve mais crime de infidelidade, os casais se separavam no juiz, então, um dos cônjuges deixava a casa, com filhos e trastes, e o desprezo era a arma da vingança. XIV O milagreiro O seu amigo Rocha não exagerava quando elogiava as qualidades empreendedoras de Sincrat, realmente, ele agia em várias frentes da atividade humana: saúde, educação, mutirão, casamento coletivo, construção e reforma física da igreja, além do seu trabalho de evangelização, porém, sua fixação, sua luta principal, era pra que todos os meninos e meninas fossem para escola antes da jornada de trabalho que por tradição davam aos pais. E, quando questionado o seu apego à atividade educativa, ele é prático: -Como posso evangelizar alguém se ele não sabe ler? A leitura melhora o entendimento! – continuava: -Não quero ter católico fanático, mas católico de mente e fé confluentes, que o conflito seja o resultado da limitação e imperfeição humanas!... – respondia. O seu antecessor, o padre Agnelo Torricelli preocupava-se mais na evangelização, não que durante o longo tempo que ficou à frente da Igreja São José, não tivesse investido em algumas pequenas ações, além da evangelização, da catequese, de levar a palavra de Jesus ali, acolá e alhures, a pé, montado em cima de um jegue, em cima de um burro ou em cima de um cavalo. Ele conseguiu nessa peregrinação, grandes feitos religiosos, mas esqueceu-se do lado prático da vida e involuntariamente, deixou ao longo daqueles anos, que surgissem pessoas firmes na fé e cegas de entendimento. Sincrat revolucionou pouco e pouco, o conceito de fé em sua paróquia: a fé foi adequada aos novos tempos. Sua primeira preocupação foi levar educação e instrução para os filhos e filhas daquela comunidade para que eles não fossem a continuação dos seus pais e avós que naquele ermo, muitos nasciam na fé católica por herança e por herança passavam aos seus filhos e netos como se a religião fosse um bem particular de cada um. Foi nessa faixa mais velha da população e nos incautos de natureza que começou tomar corpo um fenômeno religioso que atribuía ao falecido padre Agnelo Torricelli algumas graças, alguns milagres... O fenômeno religioso começou pálido, sem muita gente, mas à medida que novas histórias iam surgindo, ia incorporando novos adeptos, pessoas com problemas de saúde, oravam pedindo a intercessão do padre santo, Agnelo Torricelli, protetor dos pobres e enfermos de Nova Acácia. Sempre havia gente orando na beira de sua sepultura. Dia de Finados ou o mês de sua morte, as visitas isoladas transformavam-se em romarias, em procissões, engrossado agora, por pessoas cultas e incultas da sociedade. Embora Sincrat fizesse algumas considerações íntimas, duvidasse da autenticidade desses milagres, achava mais um produto da imaginação popular que crescia em decorrência da falta de esclarecimento da maioria e disposição e conformismo de outros. A imagem de Torricelli foi moldada em medalhas de ouro, moldada em barro, esculpida em madeira, virou fotografia de santinhos, em chaveiros e dentro de pouco tempo, foi eleito pela crendice popular como mais um novo santo da Igreja Católica. Embora Torricelli tivesse tido uma vida santa, desprendida, sem apego, sem vaidade, ainda era cedo para creditar nele a razão de algumas curas, pois as pessoas que juravam terem recebido uma graça, eram pessoas fanáticas, cegas de razão, que a cura tivesse ocorrido, mas poder-se-ia explicar pela somatização de pensamentos positivos, boa energia, que o organismo tinha absorvido ao longo do processo de cura e não um milagre pela intercessão dum santo homem, mesmo que esse homem, tivesse sido honrado, pelos seus amigos, em sua lápide, com a oração de São Francisco, um dos mais fiéis seguidores da doutrina cristã: “... Ó Mestre, fazei que eu procure mais Consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois, é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna.” Sincrat exultava-se com aquele fenômeno religioso repentino que em menos de 5 anos já galvanizara quase toda aquela região, mas não deixava de ter medo nas conseqüências de que tudo aquilo não passasse de uma manifestação ingênua de fé, que por detrás daquela singularidade, moviam interesses inconfessáveis de pessoas inescrupulosas no dia-a-dia. Entretanto, se continha, não poderia fazer ouvidos moucos, todavia, prudência teria que ser a regra, ele lembrava-se da recomendação de São Paulo, em Coríntios, Capítulo 12, acerca dos dons, da diferença, decerto os dons de Torricelli tinham sido diferentes dos seus dons. Torricelli não foi um administrador de coisas terrenas, ele tinha sido um grande amealhador de almas, um grande evangelizador, verdadeiro objetivo da igreja de Jesus Cristo. Após sua reflexão em Coríntios, Sincrat entendeu a grandeza e a visão religiosa de Torricelli, ele não passou a vida, preocupado com coisas sociais e o conhecimento humano, para Agnelo Torricelli, a fé é um dom e não depende de conhecimento do homem, mas de conhecimento de Deus e quando o coração é contaminado das coisas do mundo, difícil é sua conversão, o verdadeiro saber é imanente da Providência. Sincrat cria nas virtudes de Torricelli, exaltava essas virtudes nas homilias, porém, não tinha autoridade nem desejo de reconhecê-lo publicamente como um beato milagreiro. Quando era obrigado tecer algum comentário sobre os milagres atribuídos ao seu antecessor, o fazia cheio de dedos e prudência, que tudo aquilo seria objeto de estudo e pesquisa, de provas, de um longo processo instaurado pela Santa Sé, pelo prefeito da Congregação das Causas dos Santos, começando a beatificação, pelo bispo de sua Diocese com um instrumento específico, o Sanctorum Mater (Mãe dos Santos), no entanto, exultava que todos continuassem na fé e acreditassem na cura e solução de suas graves dificuldades, pois os desígnios de Deus são insondáveis e ininteligíveis para mente humana num primeiro momento... Hoje, o padre Agnelo é o santo eleito pelo povo daquela região e soube-se depois que a Santa Sé designara um cardeal, autoridade em beatificação para atestar a veracidade das histórias do milagreiro Torricelli, de sua santidade, se ele dispõe de pré-requisitos e requisitos para honrar os altares católicos ou se esses fatos decorrem da ingênua fé de pessoas de bom coração ou é mais um embuste de pessoas de má fé. Para o povo tudo isso é de somenos importância, pouco está se lixando para esses trâmites de reconhecimento de santidade de Torricelli pelo Vaticano. Para esses sertanejos baianos, esses devotos, essa gente simples, ele é um santo pelos desígnios de Deus e não pela vontade do papa e se ele não puder honrar os altares, decerto, honrará os seus nichos, suas casas e suas capelas. XV A roda da vida Moleque ainda, morando atrás de uma cafua, ouvia o velho Neco gritar, com sua voz rouca, de quem tinha perdido a noite na mesa de jogo de baralho, para os seus pares: -Senhores, a roda da vida não se repete!!! – eu não entendia bulhufas... O velho Neco se foi para o além e muitos anos depois, eu fui entender estudando o grego Heráclito: “não tomamos banho duas vezes no mesmo rio”, que a vida é um eterno devir, um eterno vir a ser, um eterno movimento, é como as águas de um moinho, passam e não se repetem. Ledo engano daqueles que pensam o contrário, daqueles que pensam que as situações e as oportunidades são as mesmas. Nem os atores nem o cenário e nem os fatos são os mesmos... Quando Neco falava aos seus parceiros de jogo que “a roda da vida não se repete”, ele estava chamando a atenção dos seus pares de jogatina que tem de se aproveitar cada momento da vida, cada momento, é um momento diferente, o tempo não se repete. Depois de graduada em medicina, na cidade de Salvador, Marina e o marido, também médico, retornam pra sua cidadezinha de Nova Viçosa, pelo desejo do seu pai e lá no seu subconsciente, na morada da alma, ela ainda amargava ter sido substituída por José e o seu retorno seria a oportunidade de tê-lo novamente ou rejeitá-lo como forma de vingança. Talvez não quisesse tê-lo, mas rejeitá-lo, desejo contido de vingança reprimido no subconsciente naqueles anos. Todavia, Marina não era mais a Marina de 16 anos de idade, a rosa vermelha dos cactos, o mimo da família Andrade, a princesinha daquelas bandas, a menina-moça rebelde, agora, mais velha, profissional da saúde, com dois filhos pequenos a tira-colo e um marido panaca pra cuidar, embora ainda fosse uma jovem senhora, a labuta do dia-a-dia, já lhe tinha deixado algumas marcas de expressão no rosto; por outro lado, José não era mais o belo José, o bonito José, o dom Juan dos sertões, a filharada, a mulher e os compromissos diários tinham deixado o seu semblante marcado pelos estigmas naturais do tempo e o belo José transformado em moço-velho José. O doutor Augusto Souto Pasqualini não era uma má pessoa. Formou-se em medicina jovem, ele e Marina eram da mesma turma, só que ele tinha feito residência médica em cardiologia e sua esposa em obstetrícia, com extensão em cirurgia nas duas especialidades. Ambos jovens, ambos preparados, recusaram os mais tentadores convites na capital do estado da Bahia e foram atender ao chamamento da família de Marina e dos municípios de Acácia e de Nova Acácia que além de lhes proporcionarem moradia confortável, transporte e polpudos salários, apelavam pra médica os sentimentos de sua terra natal e juntando a fome com a vontade de comer (não gostavam da vida atribulada de Salvador), arrumaram suas trouxas e se mandaram para Nova Acácia. Pasqualini obedecia cegamente Marina desde namorados, casados e dois filhos, não tomava nenhuma decisão importante que não passasse pelo crivo da mulher e quando ela emperrava, ele não era doido ir adiante. Os seus colegas galhofeiros brincavam: -Augusto, você falou com Marina?... -Colega, a mulher manda na casa e eu mando na mulher! – o seu colega tripudiava: -Você acredita nisso Paulo?... -Eu acredito em Papai-Noel!... – Pasqualini se vingava: -Samuel, é melhor ser governado pela mulher do que ela ter um Ricardão! – Samuel fechava a cara, havia um zunzum que sua mulher costurava pra fora... Augusto levava na troça as brincadeiras dos colegas, quando podia, dava suas ferroadas. Amava Marina, por isto, relevava o seu forte temperamento, ademais, os filhos chegaram e ao invés de um amor, teve que se dividir em três, enquanto ela não lhe desse grave motivo, ele jamais a deixaria por outra e os seus rompantes de mandona se limitavam à casa, aos filhos e aos quatro ou cinco empregados que lhes davam suporte doméstico e nos consultórios, a vida profissional, ambos exerciam-na com independência. O encontro de Marina e José foi inesperado e excêntrico, é que Marina não o via há uns três ou quatro anos, mais ou menos o tempo que não ia à Nova Acácia, mergulhada no curso de residência médica. Quando chegou ao pequeno hospital São José, onde exercia a profissão de médica-diretora, exigência sine qua non do primo prefeito, que fez o hospital para atender um desejo antigo da comunidade e da região, alimentado pela idéia futura de ser deputado estadual, tomou um choque quando ele se identificou, é que estava relativamente envelhecido, irreconhecível no primeiro momento, trazia nos braços uma mulher jovem para parir. Marina passou rápida, cumprimentou com um sonoro “bom dia” os pacientes e à atendente, no corredor encontrou uma enfermeira espavorida, rogando-lhe pressa porque uma paciente que dera á luz, na noite anterior, estava com pequeno sangramento vaginal e urgia intervenção imediata. Sandra, mulher de José, não obstante a quantidade de filhos que teve, continuava jovem e viçosa, deixando Marina com uma pontinha de inveja. Quando Marina viu José, brincou sem cerimônia como se nunca tivessem namorados: -José, sua mulher é um brotinho, pensei que fosse sua filha!... - José reagiu: -Um brotinho mãe de quatro filhos! – Marina pondera: -O importante é o calete, embora ela seja mãe de quatro filhos, é uma boneca! – O José machão aflorou: -Doutora, as mulheres têm os maridos que dão um duro danado para que elas fiquem em casa no bem-bom, não envelhecem! – já de mau humor... Marina fez esses comentários com uma pontinha de maldade, conhecia José como ninguém, conhecia sua vaidade, o quanto ele detestava a velhice e a feiúra, quando foi sua namorada, ele era o homem mais disputado pelas moças em Nova Acácia, agora, moço ainda, não tinha mis o viço da juventude daquela época, com a morte do seu pai, teve que assumir os negócios da fazenda, às vezes, passava o dia no sol e na chuva, junto com os pões laçando bezerros para ferrá-los. Os vincos no rosto e os sulcos na cara eram as marcas naturais desse trabalho de macho!... Mas, ela ainda não o tinha nocauteado, antes dele se refazer dos seus sutis e desairosos comentários, ela usa sua mulher como ardil para atacá-lo: -Qual é o seu bem-bom Sandra? Tomar conta dessa filharada é bem-bom? Diga ao seu marido o trabalho que você faz no dia-a-dia, enquanto ele toma leite fresquinho do úbere da vaca e olha de soslaio os peitinhos que despontam das filhas dos seus empregados, os verdadeiros responsáveis pelo trabalho duro! – José não tinha sangue de barata, explodiu: -Doutora, desculpe-me, eu trouxe a mulher pra parir, os problemas conjugais ficam para outra oportunidade! – deu as costas e saiu. Decerto, Marina tinha ganhado o primeiro round, mas a luta apenas começara, certamente, outras oportunidades viriam para que ambos abrissem ou curassem suas feridas de passado longínquo. -Senhores, a roda da vida não se repete!... – dizia o velho Neco. XVI O conflito O peso do seu segredo começava incomodar Sincrat. Há dias que não tinha uma noite com o sono dos justos. Mesmo com a labuta diuturna, indo pra cama depois da meia noite, madrugada ainda às escuras, pulava da cama. Eram cada vez mais freqüentes os sonhos com o verdadeiro Sincrat. Nos sonhos, ele aparecia pra cobrar mais catequese e mais doutrina do falso Sincrat. Apoiava e compreendia suas ações sociais, educacionais e administrativas, porém, lembrava-lhe que a principal função da igreja é divulgar os ensinamentos de Jesus Cristo que se resumem em reconhecê-Lo como o unigênito filho de Deus que veio ao mundo não para condenar o homem, mas para redimi-lo do pecado e conceder-lhe a vida eterna pela ressurreição no Juízo Final. O falso Sincrat concordava parcialmente com o verdadeiro Sincrat, mas lembrava-lhe também que sem a educação e a capacidade de discernimento do povo, ele tornar-se-ia vitima de um misticismo exagerado, às vezes, irracional e perigoso e não seria necessário vasculhar a História Geral para trazer à tona os crimes cometidos em nome da religião e fé apaixonadas, bastaria lembrar-lhe o episódio de Canudos em que o místico Antônio Conselheiro incutiu princípios religiosos irracionais na consciência daquele povo ignorante e analfabeto, como princípios distorcidos de imortalidade, de vida eterna terrena, de inferno, de paraíso e céu, levando-o depois para um embate suicida, vitimando milhares de adultos, velhos e crianças, por um governo desprovido de sensibilidade política e humana, ditador e sanguinário, que usou tropas do Exército nacional, coronéis, generais, canhões e fuzis para massacrar e eliminar os nossos simplórios e imperitos irmãos sertanejos, armados de garruchas, foices, facões e peixeiras. Não se sentia um embusteiro, um usurpador, um impostor, Deus e Jesus Cristo sabiam quanto relutou para não aceitar à missão que o verdadeiro Sincrat lhe confiou. Porém, as coisas foram tão providenciais, tão arquitetonicamente traçadas que não teve disposição para não atender ao pedido de Sincrat verdadeiro e deixou-se levar pelas circunstâncias, agora, a mentira tinha adquirido status de verdade, somente ele sentia-se prisioneiro daquela circunstância e daquela mentira, mesmo que o marginal do Beto ressuscitasse, único depositário do seu segredo, pelo tempo passado (já ia pra lá dos cinco anos), e pela credibilidade adquirida na comunidade de Nova Acácia, jamais alguém lhe daria ouvido, seria esgoelado novamente... O homem que é refém da sua consciência não tem nenhum momento da paz. Sincrat estava mergulhado nesse inferno existencial. Na missa, em casa, na rua, na escola, no passeio, na festa, dormindo, acordado, sempre o demônio de Sócrates estava lá lhe cutucando a consciência, aprovando ou reprovando os seus atos: “Sincrat gostou!...”, “Sincrat não aprova!...”, “Sincrat faria assim!...”, “Sincrat faria assado!...”, um verdadeiro inferno em vida. Pensou fugir e desaparecer para sempre de Nova Acácia. Planejou na mente várias viagens para lugares distantes e lá, ressuscitar Mário Silva, mas faltava-lhe coragem para responder pelos crimes de falsidade ideológica que de boa fé praticou. Provar que não era Sincrat, daria mais trabalho do que quando assumiu a identidade de Sincrat, embora cônscio que a verdade seria sua libertação, sua paz de espírito. . Refletia que não foi à toa o que João escreveu em seu livro, no Capítulo 8 e Versículo 32, o ensinamento de Jesus Cristo que diz: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Adiante, Jesus Cristo afirma: “Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado”. Eis aí a resposta para libertar-se do demônio de sua consciência: viver na verdade. Só a verdade seria capaz de libertá-lo do pecado que praticou, pois enquanto vivesse na mentira sua consciência não o deixaria em paz, seria sempre um escravo do pecado, sua consciência o perseguiria aonde quer que fosse e não adiantaria fugir na mentira. Porém, não seria de bom senso ficar em Nova Acácia depois que a população soubesse que foi enganada por um falso padre, os beatos fanáticos, os malfazejos oportunistas, poderiam reagir de maneira agressiva e inesperada, inclusive com risco de morte por linchamento, elegendo-o de imediato como um representante de Satanás, um representante do mal, um emissário do demônio que na impostura fez-se passar pelo verdadeiro Sincrat para enganar o povo e tudo de mal que teria acontecido na comunidade depois de sua chegada lhe seria atribuído, independente ou não de sua culpabilidade. Alimentava a certeza de que, qualquer que fosse o turbilhão, Rocha, Manduca e Ester estariam do seu lado, contra tudo e contra todos. Já tinha tido inúmeras provas de fidelidade, de amizade e solidariedade desses amigos, jamais os encontrou em ato de falsidade. Se algum impetuoso ou algum atrevido fosse falar mal do padre na presença de um deles, seria de imediato admoestado: -Por favor, não fale mal de Sincrat junto de mim! – fechava uma cara de quem comeu e não gostou e o sujeito se mandava. Mantinha algumas dúvidas da espiritualidade dos sonhos com Sincrat verdadeiro, não acreditava que fossem mensagens do além, comungava mais com a teoria de Freud sobre os sonhos, ultimamente, não o tirava da cabeça, do pecado que foi induzido cometer, tomando o seu lugar na paróquia, portanto, seria compreensível que essas informações reprimidas no subconsciente fossem colocadas pra fora através dos sonhos, uma maneira natural do organismo aliviar-se dos conflitos da consciência e não avisos espirituais. Pensou e repensou falar tudo com o seu Bispo, contar-lhe tintim por tintim, desde quando era taxista até o dia que encontrou Sincrat e foi pago para transportá-lo até Nova Acácia. Contar-lhe a história do acidente e involuntariamente tornar-se um padre substituto, mas lhe faltava coragem, não confiava em sua compreensão, achava-o bitolado, tradicional, de doutrina religiosa ortodoxa, obsoleta e incapaz de enxergar novas idéias e aceitar novas mudanças, mesmo àquelas consumadas pela comunidade. Não foram poucos os arranca-rabos que teve com o seu Bispo para realizar pequenas mudanças em sua paróquia, ele sempre estava em posição contrária, Sincrat entendeu que a melhor maneira de tocar suas ações comunitárias sem a interferência do Bispo seria cuidar bem da evangelização conforme lhe agradasse e o trabalho secular, pouco lhe comunicasse. Concluiu que seria de bom alvitre não confessar o seu segredo ao Bispo, ele não o entenderia e tomaria decisões impulsivas e precipitadas mesmo que fosse um segredo de confissão, ele seria capaz de usar qualquer artifício para lhe expulsar da igreja de Nova Acácia, faria chegar do Oiapoque ao Chuí, onde tivesse uma diocese, as informações do seu embuste, de sua intrusão, não expressaria o menor gesto de perdão. Sentir-se-ia humilhado por ter sido enganado e a punição do intruso seria o remédio e a saída. Não enxergava uma saída plausível, é como se divisasse o dito popular: “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”, não contaria com o apoio de sua Igreja e menos ainda da comunidade, ademais, lhe pesava na consciência, comprometer a idoneidade de sua Igreja, embora discordasse de muita coisa, aprendeu amá-la e respeitá-la. Descobriu que a Igreja é uma instituição divina e providencial, a Igreja em si não comete erro, os erros são humanos, o erro ocorre em decorrência da limitação e vicissitudes humanas, portanto, o pecado ocorre no homem-igreja e não na Igreja... Não obstante as consequências que teria de enfrentar com a revelação do seu segredo, sua fé na misericórdia de Deus aumentava a cada dia, a certeza de que Jesus Cristo lhe perdoaria por Mário Silva ter assumido Sincrat se reforçava dia-a-dia. Não tinha feito outra coisa mais significativa naqueles cinco anos de sacerdócio do que testificar sua palavra. . O seu medo e a sua angústia não eram patológicos, se fundamentavam no misticismo reacionário da comunidade, na ala ortodoxa de sua igreja e no receio de que qualquer advogadozinho do interior em busca de fama lhe processasse judicialmente e o juiz o mandasse pra cadeia pelos crimes de falsidade ideológica que praticou. Somente uma pessoa poderia lhe ajudar, confiava em sua lealdade e discrição: “Seu” Manduca. Esses anos todos, convividos diuturnamente, deu ao pároco, tempo para conhecer aquele homem estranho, mas honesto, bondoso, leal, trabalhador incansável e um operário de Jesus Cristo. Porém, não sabia se Manduca seria capaz de compartilhar do seu segredo sem dar a língua nos dentes. Embora ele fosse leal, Sincrat não poderia jogar todas suas fichas na estrutura emocional de um homem de passado misterioso porque o limite entre o ódio e o amor é tênue, embora ele demonstrasse querer bem a Sincrat, sua devoção e o seu amor em Cristo eram maiores. Um era o seu benjamim, o outro, era o seu bem querer e a razão de sua vida. Amava Sincrat, mas amava muito mais Jesus Cristo. Enfim, iria falar no momento oportuno com Manduca, teria que compartilhar suas preocupações com alguém, não daria mais para continuar com aquele peso na consciência, que as consequências fossem para as cucuias, somente a verdade libertará: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32); “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8, 36); XVII A sinuca de bico “Seu” Manduca estava mais estranho do que dantes naquela tarde. Natureza introspectiva, pouco dado à conversação e ao bate-papo, quando bateu à porta do gabinete de Sincrat, o fez com um semblante carregado de preocupação, chamando de imediato à atenção do padre, pois pouco ou nenhum piseiro fazia ali, quando ele ia ao gabinete do pároco, ia tangido pela necessidade, jamais para jogar conversa fora: -Padre, eu quero lhe confessar um segredo! -Um segredo de confissão? Se for, dê-me tempo para me preparar espiritualmente, nada melhor que seja no confessionário e ao lado da imagem... – foi abruptamente interrompido: -Não! Quero lhe confessar de homem para homem, Quero deixar o senhor à vontade para me denunciar, não suporto mais as noites insones e a consciência pesada!... -Quê maluquice é essa homem de Deus? -Não é maluquice, eu matei... – o padre não lhe deu tempo: -Matou!? -Matei um homem!– Sincrat colocou as mãos na cabeça aturdido... -Meu irmão, é um caso de polícia, caberá ao senhor denunciar-se e não a mim!... – Sincrat estava nervoso. -Eu sei... – Sincrat o interrompe: -Se sabe, não coloque esse fardo nos meus ombros, pois jamais denunciarei ninguém, principalmente, o senhor que é da minha confiança e estima. Se o senhor matou um irmão, procure a polícia, a justiça, e aguarde o julgamento da sociedade, quanto a Deus, peça-Lhe misericórdia! -Todos os dias, eu peço-Lhe perdão dos meus pecados. Não queria matar, mas no ardor da luta e para não morrer, quando dei por fé, eu estava na casa do sem jeito... -Filho de Deus, desembuche essa história, quem você matou? -José Roberto Filho... – Sincrat mais uma vez o interrompe: -Quem é esse José Roberto Filho? – Não se lembrava. -O Beto... – Sincrat por pouco não desabou: -O Beto que esteve aqui me importunando?... -Sim, ele mesmo!... O padre num abrir e fechar de olhos captou o que ocorreu desde o surgimento de Beto com ameaça de extorsão até o dia de sua morte. Não desejou, mas sentiu um alívio quando soube que alguém o tinha despachado para os quintos do inferno. Agora, parecia que tudo ia voltar novamente, o Beto lhe continuava perseguindo... Lembrou-se que naquele dia que se encontrou com Beto, o seu “Seu” Manduca tinha surgido do nada e garantiu-lhe ter ignorado o seu diálogo com o indesejável indivíduo. Agora, ele, Sincrat, desconfiava que o seu auxiliar de serviço na paróquia São José tivesse mentido, devia ter presenciado o seu entrevero com o marginal e certamente, iria lhe contar o motivo do crime, instintivamente deduziu: -Filho, eu continuo achando que tu deverias ter procurado a polícia e não a mim! -Si... sim... ma... mas... – Sincrat percebeu o seu nervosismo: -Fale homem de Cristo! -Foi por sua causa!... -Por minha causa? -Eu descobri que Beto estava lhe extorquindo e o procurei. Ele admitiu, discutimos e terminamos nos agredindo fisicamente. O resto é do conhecimento de todos em Nova Acácia! -Extorquindo–me? -Perdoe-me padre, mas ouvir a vossa discussão... – Sincrat não se controla: -Tu andas às escondidas ouvindo as minhas conversas? -Juro por Deus que foi sem querer!... -Tu estás blasfemando!... -Não, não estou usando o nome de Deus em vão, porém, é a verdade! – Manduca estava seguro. -Desculpe-me. Não estou acostumado com esse negócio de crime, mas se fosse verdade, quem acreditaria naquele marginal? -O homem em si é bom, mas sociedade é ruim, a reação da comunidade diante de uma impostura religiosa seria inimaginável!... -Tu estás com a razão “Seu” Manduca, uma calúnia repetida ganha foro de verdade, mas que pretendes fazer? -Contar parte da verdade à polícia, à justiça. A outra metade morrerá.... – Sincrat o interrompe: -Assim tu irás continuar na mentira, “Seu” Manduca! -O bem está acima da justiça do homem. Mesmo que aquela escória da sociedade estivesse com a verdade dos fatos, ele também estava movido por interesses inescrupulosos. Ele não estava interessado no bem comunitário, mas nos seus vis interesses e quem me garante sua verdade? - Sincrat se rende: - Tens razão, às vezes, é preferível uma mentira do bem, que uma verdade do mal!... – “Seu” Manduca assentiu com a cabeça três vezes. Palavra empenhada, palavra cumprida. Manduca apresentou-se à polícia com Sincrat e um advogado. O padre teve muita influência para que o seu auxiliar de serviço não fosse preso, com o peso de sua palavra. Porém, não falou nada que lhe comprometesse amanhã, entretanto, não poupou adjetivos na honradez, na religiosidade e na boa conduta de Manduca e assegurou ao delegado que o seu amigo usou de legítima defesa, pois a vítima era conhecida pelo cinismo e violência. A peça do Ministério Público foi construída mais para inocentá-lo do que levá-lo ao crivo dos jurados. A fama e o mau caráter de Beto ajudaram sua excelência, o juiz da Comarca de Nova Acácia aceitar os argumentos do delegado, do promotor e da defesa, arquivou o processo. A família da vítima não mexeu uma palha para que a justiça fosse feita. A maioria, pessoas honradas e probas, o reprovava em vida, alguns parentes tinham medo de sua presença e quando souberam de sua morte não soltaram foguetes, mas não lhes foi surpresa, pois mais dia e menos dia, Beto teria que se acabar, pela quantidade de inimigos, com os dentes pra cima numa vala. Existem pessoas dotadas de recursos morais e presença de espírito para solucionar os problemas alheios, mas tropeçam com facilidade nas pedras que surgem no seu caminho. Sincrat resolveu o problema de Manduca a contento e rapidamente, mas continuava mergulhado no seu. Manduca, pela amizade e respeito, não lhe inquiriu a verdade, jamais ele poria em dúvida sua palavra, entretanto, o seu conflito era mais forte. Não mentiu, mas omitiu para as autoridades a verdadeira história, lavou as mãos para declaração parcial de Manduca. Não foi convincente suficiente com o seu auxiliar para que ele contasse a verdadeira história, o medo que a comunidade de Nova Acácia soubesse que ele era um falso padre o deixava confuso, obtuso, raciocínio embotado, ademais, havia aprendido gostar do sacerdócio, da facilidade que a batina lhe dava para adentrar em todos os lares, levando-lhes a palavra de Jesus Cristo e solucionando problemas. Teria que ter uma saída para confessar sua verdadeira identidade, dizer ao povo que não havia cometido nenhum crime, que fora empurrado pelo verdadeiro Sincrat para assumir o seu posto, não se considerava um impostor, mas um substituto e tinha sido enviado à Nova Acácia para cumprir uma missão e pelos sonhos com Sincrat, a missão ainda estava em curso, ele insistia mais na evangelização às ações administrativas e sociais. A mentira traz ao homem justo aflição e sofrimento. Jesus Cristo além de abominar a mentira, atribuía ao diabo a origem da mentira desde o princípio dos tempos: “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os seus desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8, 44). Não passava mais uma noite em paz, a consciência a lhe cobrar, estava numa sinuca de bico, somente a verdade lhe aliviaria a alma e a mente. XVIII O tiro saiu pela culatra “O argucioso agirá com conhecimento” (Provérbios 13:16) José, filho de Raimundo, pai de quatro filhos menores, resolveu comemorar o seu décimo aniversário de casamento, não se sabe até hoje, se por detrás dessa filantropia houve alguma argúcia, algum interesse menos social ou o desejo escuso de ter Marina por perto. Ela e Augusto Pasqualini foram os primeiros convidados, deixando Sandra cismada: - Primeiro os parentes, depois o resto! -Os parentes não precisam de convite, eles que se aprocheguem! – meio rude. -Não é assim José, a pessoa vai aonde é convidada, ninguém é cachorro... – Sandra é interrrompida: -Convide os seus e deixe-me convidar os meus! – Sandra não agüentou: -Cuidado José, senão, eu e as crianças lhe deixaremos aí com os seus convidados!... -Faça isso!!! -Não me desafie, eu sou capaz de fazê-lo! -Eu lhe traria amarrada como uma novilha! – Sandra rodou a baiana: -Eu lhe denuncio à polícia ou dou-lhe um tiro na virilha, nunca mais você será machão... – continuou: -Tu pensas que não percebo sua recaída pela doutora!? -O seu ciúme é doentio, Sandra! -Não, não é ciúme, quando você a encontra se desmancha em mesuras e salamaleques! -Ela é uma dama... –Sandra o interrompe. -Ela é uma rameira e não uma dama! -Cuidado com sua língua!... -Vocês que tenham cuidado, estou por um triz pra falar com o marido dela de suas safadezas! -Você é doida? Somos apenas velhos e bons amigos!... – notava-se moderação em sua voz. -Que continuem como amigos.... Entre marido e mulher não se mete a colher. No outro dia, José convidou primeiro os seus parentes e os de Sandra, levando os convites pessoalmente e para não provocar a ira de sua mulher, ele a deixou que convidasse as demais pessoas, com exceção do padre Sincrat, que José o estimava como um irmão e não abria mão de sua bênção. Embora Sandra tivesse tido quatro filhos, ainda não havia perdido o viço e a plástica da juventude. Morena de calete firme como um jacarandá, ela tinha herdado da mãe os olhos verdes e graúdos e do pai a boa altura e o corpo comprido e delgado. Os seus 26 anos ainda não lhe davam marca de expressão, rugas, ou qualquer outra coisa que lhe denunciasse a idade, ao contrário, parecia quatro ou cinco anos mais nova e com uns peitos vigorosos como se os filhos não os tivessem mamados. Naquela noite da festa de aniversário, Sandra estava linda e deslumbrante. Como uma rainha, desfilava desenvolta no meio dos convidados e das convidadas, sem afetação, sem orgulho, despertando ciúme e inveja nas mulheres e provocando nos homens, olhar de cobiça e desejo de sexo. Não se poderia dizer a mesma coisa de Marina embora fosse ainda jovem, é que com as preocupações do estudo na capital baiana, a vida dissoluta que levava em noitadas e bebidas, antes de se tornar oficialmente mulher de Pasqualini, davam-lhe uma aura mais carregada, mais preocupada, uma expressão de senhora. Ao contrário de José, rude, peão de campo, mãos calosas, curvado não pela idade, mas pelo hábito adquirido de montar a cavalo para pegar novilha no pasto ou aboiar o rebanho em grandes retiradas; Augusto, marido de Marina, era o oposto nas formas e na aparência: alto, esbelto, cútis morena clara, cabelos pretos escorridos, quando foi apresentado à Sandra, mexeu-lhe do dedão do pé ao último cabelo da cabeça: -Augusto às suas ordens, senhora! -Doutor, é uma honra tê-lo em minha casa! -O “doutor” ficou lá na hospital, o Augusto é que estar aqui!... – disse-lhe com galhofa. -Senhor Augusto, sinta-se em casa! -Queremos-lhe agradecer pelo convite. Marina ficou lisonjeada!.... – Marina percebe que seu marido mexeu nos hormônios da fêmea e minimiza: -Sandra, o meu marido é brincalhão, não o leve a sério, que é de José? – não esperou a resposta, puxou o marido pelo braço e foi ao encontro do ex-namorado, deixando Sandra no trabalho de receber os convidados. Não o conhecia pessoalmente, ouvia falar o nome de quando em vez de Dr. Augusto, cardiologista de mancheia e marido da doutora diretora do hospital de Nova Acácia e ex-amor de José. Certa feita uma amiga havia lhe falado da boniteza do médico, não a levou a sério, estava acostumada aos exageros de Maria das Graças quando falava de homem. Ela não era velha, mas naquele lugar, depois dos 20 anos de idade, casamento tornava-se difícil e Maria das Graças já se sentia encalhada: -Sandrinha meu amor, é um pedaço de mau caminho!... – brincava. -Quem, mulher? -O marido da médica-diretora! -O marido da doutora Marina? -Sim! -Não o conheço! - É um macho pra mulher nenhuma botar defeito!... – ria às gargalhadas. -Gracinha deixe desse riso frouxo!... -Quê seria de mim com aquele homem entre as pernas?... – continuava com a risada. Agora, Sandra descobriu que a amiga tinha razão, não houve exageros de Gracinha, Augusto é um pancadão, um gentleman, um lorde inglês, perdido naquele sertão. Essa descoberta mexeu tanto com a cabeça da dona da casa que mesmo antes dos casais deixarem se levar um nos braços do outro com uma boa música dançante, Sandra já o sentia nos braços. Sincrat chegou ainda cedo à festa. José insistiu que ele ficasse um pouco mais, o tempo necessário para que todos os convidados chegassem e ouvissem sua preleção e recebessem suas bênçãos (José ia à igreja quase todos os dias), sem as suas bênçãos, sem a sua palavra, o evento não teria a bênção do Mestre Jesus Cristo. Tanto insistiu que Sincrat começo falar 15 minutos para 21horas: “Irmãos, irmãs, todos nós aqui, queremos pedir a Deus e a Jesus Cristo, seu único filho, que desça sobre José e Sandra suas bênçãos e renove por mais 10 anos, mais 10 anos, mais 10 anos..., o seu casamento. Que eles sejam exemplo de união, de amor, de companheirismo e fidelidade para os novos casais que desejam construir uma família cristã”. “Desde que aqui cheguei, tenho aprendido reforçar os meus princípios de família observando a filosofia de vida de José e Sandra. Ele como homem de trabalho, religioso, marido exemplar, pai extremoso, patrão solidário, amigo prestimoso e fiel; ela, boa dona de casa, mãe dedicada, cristã, amiga, companheira e esposa incomparável etc., etc., etc.” No final da preleção, abriu a Bíblia (Efésios 5:22...., 33), que exorta a sujeição do homem a Deus, assim como a mulher deve ser submissa e sujeita ao homem, varão da casa, “cabeça da mulher”, chefe da família e senhor da situação. Embora submissão e sujeição sejam palavras sinônimas, Sincrat entendeu pular os capítulos 22,23 e 24 do livro de Efésios, certo de que, naquele momento, seria difícil explicar essa sutil e tênue diferença de submissão e sujeição que no seu entendimento, a submissão obedece ao princípio de autoridade, embasada em normas convencionais de conduta, a obediência é racional; enquanto a sujeição é autoritária, o sujeito obedece sem discussão, não tem outro jeito, se ele não obedece, estará sujeito às penas não escritas, firmadas na tradição oral ou às penas de uma legislação dominante em que o dominado não tem voz e vez, é aquilo que se diz: “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Nos capítulos subseqüentes, São Paulo continua em sua carta aos Efésios, fazendo uma relação entre a submissão da igreja a Jesus Cristo e a sujeição da mulher ao marido, porém, os versículos são mais eufemistas, menos machistas e define os deveres do homem com sua mulher, coloca-lhe nas costas o peso do matrimônio e a indissolubilidade do casamento, culminando com a frase: “... Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa carne”. Compreendia Sincrat que se os cônjuges formam uma só carne, não havia uma relação de sujeição, mas uma relação de dependência, de reciprocidade, o marido depende da mulher tanto quanto ela depende do marido. Por isso, o padre leu somente o restante da epístola aos Efésios, achou mais condizente ao clima de alegria que reinava no ambiente e aos novos tempos e às novas idéias matrimoniais da sociedade mundial e Nova Acácia mesma esquecida naquele sertão baiano, essa fumaça de mudanças sociais chegavam até lá através das ondas do rádio e dos seus filhos doutores: Capítulo V 25 Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, 26 Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, 27 Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. 28 Assim devem os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. 29 Porque nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja; 30 Porque somos membros do seu corpo, da sua carne, e dos seus ossos. 31Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa carne. 32 Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja. 33 Assim também vós, cada um em particular, ame a sua própria mulher como a si mesmo, e a mulher reverencie o marido (Efésios 5: 25....,33). Se por detrás da intenção festiva de José estava Marina, o seu desejo inconfesso de tê-la perto de si, conseguiu. Dançou com a ex-namorada todo o tempo e o tempo todo. O marido da médica e os demais convidados tiveram apenas suas sobras, quando ambos sentiam que estavam sendo demais... Sandra e Augusto não deixaram por menos, discretamente, dançaram, cochicharam, suspiraram, se apertaram e se encaixaram. Não se soube depois por nenhum mexeriqueiro se eles fizeram juras de amor, promessas de encontro, confissão apaixonada, porém, lia-se felicidade no semblante de ambos. Em vão foram as palavras de Sincrat sobre o casamento, naquela noite, a concupiscência e o desejo sexual foram mais fortes, São Paulo foi vencido pelo pecado da carne. O tiro de José saiu pela culatra... XIX Michelangelo não pintou Todo escritor é gênio? Não!...Machado foi gênio, Ruy Barbosa foi gênio, Castro Alves foi gênio, Tobias Barreto foi gênio, Drummond de Andrade foi gênio, Bandeira foi gênio, Alan Poe foi gênio, Haminguey foi gênio e tantos outros, mas um gênio universal da estatura de Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoni (nascido em Caprese em 6 de Março de 1475, faleceu em Roma, em 18 de Fevereiro de 1564), pintor, escultor, poeta e arquiteto renascentista italiano, rival de Leonardo da Vinci nos feitos, são os “Halley” da humanidade. Conta a lenda que ao terminar a escultura de Moisés, a obra estava tão perfeita que ele bateu o cinzel num dos joelhos da estátua e ordenou: “Perché non parli?” , tal a perfeição e a semelhança. Sua pintura de “Genesis” e “O Juízo Final”, na Capela Sistina são dois patrimônios inigualáveis da humanidade. Pois faltou naquele fim de tarde, uma sexta-feira 13, faltou um Michelângelo para retratar a cena que reunia Sincrat, “Seu” Manduca e “Dona” Ester, no gabinete da sacristia, descontraídos, jogando conversa fora, questionando o fim do latim na Santa Missa: -Padre Sincrat, a missa antigamente era mais bonita, quando o padre começava: “In nòmine Patris, et Fìlii, et Spìritus Sancti – Nós respondíamos: “Amen”. – Ele continuava: “Gràtia Dòmini nostri Jesu Christi, et càritas Dei, et communicàtio Sancti Spìritus sit cum òmnibus vobis.” – Nós completávamos “Et cum spiritu tuo’. – “Dona” Ester derreteu-se: -Até hoje eu me arrepio “Seu” Manduca quando ouço essas palavras – voltando se pare Sincrat: -Lembra-se do final padre? -Claro, “Dona” Ester, não tem tanto tempo assim, foi em 1962, com a publicação do Concílio do Vaticano II, que cada lugar passou usar o sua próprio idioma, fiz uma centena de missas tridentinas... – e declina os ritos finais: “Dòminus vobìscum”. – A assembléia responde:“Et cum spìritu tuo”. – O celebrante continua:“Benedìcat vos omnipotens Deus, Pater, et Filius, et Spìritus Sanctus”. – Assembléia:“Amen”. – Na despedida, o sacerdote: “Ite, missa est.- Finaliza a assembléia:“Deo gràtias”. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo dando viva ao padre Sincrat, Ester era a mais entusiasmada: -Padre, pensei que não se lembrasse, tem tanto tempo... – Sincrat torna o feito irrelevante: -Cinco ou seis anos, D. Ester!... – completa: -“Seu” Manduca não é padre e fez a introdução do rito! -Com sua vênia padre, fui coroinha! - o padre intervém: -Hoje, o senhor é mais do que coroinha, é um acólito! -Agradeço-lhe, sua indicação ao bispo fez-me acólito! -Fiz a minha obrigação. O senhor é mais do que um auxiliar da igreja, é um defensor do padre e amigo da comunidade!... – folgou-o, Sincrat. “Seu” Manduca não cabia em si de tanta felicidade, somente ele sabia a razão, racionalizou: “Beto mereceu o destino que teve, Sincrat é Sincrat”. XX Segredo de família “Leais são as feridas feitas pelo amigo, mas os beijos do inimigo são enganosos”. (Provérbios 27: 6) O padre tem muito de psicólogo e o psicólogo muito de padre. O psicanalista usa o divã e o padre o confessionário. Ambos penetram na mente e na alma do sujeito com jeitinho e perspicácia que o indivíduo vomita toda sujeira que existe dentro de si. No Capítulo XIX, vimos que “Seu” Manduca e “Dona” Ester estavam mais despojados, mais soltos, mais extrovertidos e mais desinibidos com o padre Sincrat e Sincrat com eles. Um mês depois daquele triunvirato encontro, Sincrat recebeu Manduca em seu gabinete. Não foi espontâneo, foi convidado pelo pároco, mesmo com mais intimidade, ele tinha por lema: “cada qual em seu lugar”. Não usaria, nem abusaria do desprendimento do padre: -O senhor quer falar comigo, padre Sincrat? -Sim! – respondeu o padre sem olhá-lo. -Às suas ordens!... -Quero começar a obra do seminário! – Rocha doou esse terreno à diocese para construção de um seminário a pedido de Sincrat. -Ótimo! – Manduca continuava econômico nas palavras. -Ótimo o quê? -Para se terminar é necessário começar, é uma grande construção, a diocese dispõe de recursos? -Construção não é a prioridade do bispo, mas o seminário é do seu interesse! -Se o bispo tem interesse no seminário, a construção sai. Quando o senhor pretende começar? – quis saber Manduca. -Breve! – diz-se preocupado: -“Seu” Manduca, estou preocupado como fazê-lo, aqui não existe uma construtora!... -E Acácia? -Não! -Contrate um engenheiro para o projeto e acompanhamento. Pedreiros, carpinteiros, ferragistas, armadores, eletricistas, pintores, aqui, tem demais! -Tu tens razão, temos bons profissionais, não será necessário contratar uma construtora. Posso contar com o senhor? -Claro, lembre-se que sou um quebra-galho!... -“Seu” Manduca deixe de modéstia, não lhe quero na colher ou no martelo! -Não?... -Não, o senhor irá ser o coordenador, o mestre geral, ouvirá somente a mim e ao engenheiro! -Obrigado padre Sincrat pela confiança, o senhor é um filho para mim!... – emocionado. -O senhor tem filho? – Manduca assustou-se... -Filho?... -Sim, o senhor nunca me falou de sua família... -Não falei a ninguém, nem ao padre Torricelli que convivemos por longo tempo! -Bem, se o senhor não quiser falar... Armando Sales de Sá não falou naquela ocasião, talvez não estivesse preparado, talvez escondesse um segredo de família, talvez tivesse cometido um crime em passado remoto, talvez sofresse ainda a desilusão de um grande amor ou nada disso tivesse ocorrido, apenas, Manduca não gostasse de falar demais, traço visível de sua personalidade introspectiva. Porém, um mês depois, a pretexto de informar ao pároco as providências iniciais que tinha tomado para construção do seminário, na saída, espontaneamente, surpreendeu Sincrat: -Eu não tenho filhos! -O quê? -Um mês atrás o senhor perguntou-me se eu tenho filho, lembra-se? -Agora?... -Agora! – desembuchou: “Eu nasci em Campina das Missões, emancipado recentemente, na região de Porto Lucena, Ubiterama, Salvador das Missões, São Paulo das Missões e outros municípios gaúchos”. “Os meus pais tinham uma boa propriedade agrícola familiar. Familiar porque éramos nós que a cuidávamos, embora de quando em vez, ele contratasse operários temporários para nos ajudar na labuta do dia-a-dia”. “Pai amoroso, trabalhador incansável, bom caráter, católico por convicção e prática, pai de cinco filhos (três homens e duas mulheres), que de repente viu o mundo desabar em sua cabeça e não suportando o baque, morreu deprimido alguns anos depois”. “A minha mãe, uma santa mulher, cuidava do meu pai e dos filhos com dedicação de Amélia. As nossas necessidades eram satisfeitas em primeiro lugar, as dela depois. O prazer maior dela e do meu pai, quando éramos meninos, era nos ver perfilado como homenzinhos, indo pra escola ou a caminho da igreja aos domingos”. “O meu pai ia bem economicamente, não éramos ricos, mas havia abundância em nossa casa. O aipim, o leite, o queijo, o milho, a farinha, a abóbora, a mandioca, o legume, a verdura, tudo era tirado da nossa fazenda”. “Mas o diabo não estava contente. O meu pai tinha como único inimigo, um vizinho de fazenda, certo dia, quando ele voltava para casa do trabalho, ouviu os gritos da minha mãe, pedindo socorro. O escroque fazendeiro tinha amordaçado as minhas duas irmãs menores e com uma faca ameaçava estuprá-la, que resistia com valentia. O meu pai não contou conversa, deu-lhe uma paulada na cabeça que o cara caiu e não mais se levantou”. “Houve inquérito, contrataram-se advogados, promotoria ofereceu denúncia, juiz convocou os jurados e o meu pai foi absolvido por sete votos a zero. A comunidade campinense em peso compareceu ao fórum com faixas e cartazes solidários ao “Seu” Luis”. “O meu pai voltou ao trabalho e a labuta da lavoura como dantes, continuou indo às missas aos domingos. A minha mãe ficou um tempo sem ir à cidade e a igreja, sentida ainda com o ultraje que sofreu. Nunca mais a deixamos sozinha com as minhas irmãs menores, um dos homens lhe fazia companhia, por ser o filho mais velho (18 anos de idade), a tarefa me era sempre delegada. Eu fazia sua segurança com prazer, eu a amava e tenho a impressão que ela me amava mais do que aos outros, os meus irmãos não conseguiam disfarçar o ciúme que sentiam de mim, por mais que D. Leonor procurasse agradá-los”. “Seis anos depois dessa tragédia, o meu pai morre aos 48 anos de vida (minha mãe era mais nova um ano), de infarto fulminante. A minha mãe, desolada, deprimida, sem o seu amor maior, morreu dois anos depois, de uma febre que os médicos de lá não descobriram a causa”. “Enfim, dividimos os bens. Vendi a minha parte, deixei-os encaminhados e preparados pra vida, as minhas irmãs casadas e a mais nova, grávida. Quis ser padre, coroinha eu fui, padre não foi possível, frustrado fugi. Há mais de vinte cinco anos corro mundo, ninguém sabe como estou e onde estou, acho que já me deram como morto. Depois que perambulei por aí sem rumo, nesse fim de mundo cheguei e nele quero morrer”. Sincrat era todo ouvido, não se mexia da poltrona, embevecido com a história do seu auxiliar de serviço. Percebeu que estava ali um homem frustrado por não ter alcançado os seus objetivos, renunciado suas ambições e desiludido da vida. Havia amado o seu pai, mas sua mãe foi sua luz e o seu norte, com sua morte, o mundo lhe veio abaixo, os irmãos encaminhados, como um cavaleiro errante, se homiziou em Nova Acácia e acreditava que jamais a família iria encontrá-lo. Sincrat levantou-se correu para Manduca, abraçou-o efusivamente e saudou-o: -Parabéns “Seu” Manduca, bonita história de vida! -Obrigado padre, mas, há centenas delas por aí! -Gostaria que o senhor me respondesse duas perguntas, posso? -Mais, se desejar! -Teve uma grande paixão? -A única mulher que amei foi a minha mãe e o meu amor foi enterrado em sua sepultura. Jamais iria encontrar uma mulher tão virtuosa, que me amou e nada me exigiu que se doou e ensinou-me sua fé. Hoje, parodiando São Paulo, eu vivo em Cristo e Cristo em mim... – Sincrat o interrompe e faz a segunda pergunta: -Contou essa história ao padre Torricelli no confessionário? -Não, não contei a ninguém, soube de algumas histórias que fazem ao meu respeito na cidade, mas nenhuma é verdadeira, embora não lhe contei em confissão, posso confiar em sua discrição? -Serei o seu fiel depositário! -Precisava confiar esse segredo... -Jesus Cristo lhe dê a paz! -Amém!... XXI Suspeição "Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer." (Romanos 3:10) A suspeição desperta mais curiosidade do que a realidade, a imaginação não tem limite, enxerga-se o que não existe e cega-se no que existe. A festa de José continuou além da soleira de sua casa. A partir daquele dia, Sandra começou ter algumas agonias, alguns mal-estares, que diminuíram no médico clínico e terminaram definitivamente no único cardiologista da cidade, Augusto Souto Pasqualini, marido de Marina, ex-namorada de José. No começo, José a acompanhava, depois, acompanhada do filho mais velho. Não era bem visto naquele fim de mundo, as mulheres irem ao médico (pouquíssima médica), sozinhas. Elas iam sozinhas, às benzedeiras, às parteiras, às mães -de- santo e quando as fumaças da civilização, chegaram à Nova Acácia, trazidas pelos mutirões do padre Sincrat, por sua luta contra o preconceito, elas começaram ir ao doutor, mas acompanhadas. De língua passada, a secretária de Augusto, deixava-a para o final do expediente, quando todos os clientes já tinham saído, é que Sandra entrava no gabinete de Augusto e enquanto ela lá estava, a secretária entretinha o menino. A consulta de porta fechada a ferrolho, demorava mais do que o necessário. Não se ouvia voz, quando em vez, ouvia-se algum barulho de objeto caindo e raríssimas vezes uns grunhidos... Sandra saía de cabelo desgrenhado, visto somente pela discreta secretária do doutor e completamente despercebido pelo menino. Os retornos não eram semanais, mas quinzenais e tornavam-se frequentes, quando José viajava. José não se consultava com Marina, mas o curioso passou observar que quando um deles viajava a negócio, o outro também arrumava a sacola, embora José dissesse que ia comprar gado ou vendê-lo e Marina fosse comprar remédio e material médico para o hospital, em cidades diferentes, as coincidências das viagens ninguém podia negar. Augusto estava tão envolvido com a cura do coração de Sandra que não enxergava ou não queria enxergar essas coincidências, ultimamente, começava sentir e incomodar-se com o peso autoritário de sua esposa. Antigamente, quando os seus colegas galhofavam a respeito, ele se irritava mais com os seus gracejos do que com a sua submissão de esposo. Marina não lhe dava muita importância, às vezes, avisava-lhe a viagem em cima da hora: -Irei a Salvador amanhã cedo! -Assim, em cima da hora?... -Tu deverias estar acostumado, querido! -Ainda não me acostumei com suas viagens cada vez mais repentinas! -Fui convocada pela Secretaria da Saúde do estado! -Não faz 15 dias que você esteve lá.... – Marina não suportou, bronqueou: -Deixe de rabugice homem! Quer me controlar? Agora, é tarde!... -Quando você voltar, teremos uma conversa! – Augusto estava visivelmente irritado. -Não se irrite, sou toda ouvido! -Hoje, não!... O verdadeiro interesse de Augusto, naquele momento, era dar o seu grito de independência, livrar-se do autoritarismo de sua mulher, ou melhor, livrar-se dela para sempre e já!... A viagem não passou de um pretexto, pouco estava se lixando para suas idas e vindas, o que ela fazia ou deixava sem fazer, havia se cansado do seu autoritarismo, caiu em si, reconheceu naqueles últimos meses, o quanto tinha sido subserviente nas mãos de Marina. Sandra não tinha sido a causa desse descontentamento, mas a centelha necessária para que ele saísse daquela letargia e descobrisse novos caminhos, nascesse de novo... José não se queixava da esposa, embora ela não lhe despertasse mais os mesmos arroubos sexuais do passado, principalmente, depois da chegada de sua ex-namorada à Nova Acácia, a rotina de pai de família não lhe pesava. Sua obrigação de macho tinha sido extremamente aliviada, senão extinta, com a precária saúde de Sandra e a sua crescente ojeriza. Ele não mais a despertava sexualmente, vez ou outra, ela lhe abria as pernas por obrigação, insossa e sem gozo, mais por dever do que por prazer. A festa aproximou-os e a vida os afastou. XXII O sertanejo Pensa o homem da grande cidade e o homem do litoral que nas cidadezinhas do sertão, predomina uma monotonia sem fim, ledo engano. O sertanejo é alegre, gosta de festa, é família, é prático, é trabalhador, é corajoso, é beato, é supersticioso e um eterno apaixonado por sua terra. Quando a situação lhe é adversa, quando a seca lhe vem, quando a água e o capim não alimentam o gado; quando a farinha, o aipim, o milho, o feijão, a abóbora, o inhame, o legume, a fruta, a carne seca, o leite de cabra, o leite de vaca, a carne de carneiro ou de bode, faltam à mesa do sertanejo, ele ainda resiste e insiste para não deixar o seu pedaço de chão, às vezes, fica tão magro de fome quanto seus bichos, e quando a situação se torna ainda mais adversa e exige que ele pegue sua trouxa, sua mulher, seus filhos e sua cachorrinha vira-lata e saia pela estrada, ele o faz melancólico e aos primeiros sinais de chuva, ele volta para sua malhada, volta para seu sítio e começa tudo de novo!... Quando ele lida com o gado, na caatinga, no cerrado, enfrentando uma floresta rasteira de cactos, pereiro, aroeiras, aveloz, vegetais xerófitos, macambira e, desviando-se de espinhos e galhos secos que dificultam seus movimentos, consegue derrubar o novilho pelo rabo ou quando se vê diante de um descampado, um campo em que o limite é o horizonte, o sertanejo não “é antes de tudo um forte”, é um super-homem das pradarias, que em fração de tempo e com a destreza de um raio, laça o mais obstinado boi. O desconhecido é visto de soslaio, de esguelha, nunca de frente, ele é sempre desconfiado e escorregadio. Se a ocasião condiz prosear com um amigo, na varanda ou no terreiro de sua casa, ele queda-se de cócoras sobre os calcanhares com um cigarro de fumo - de -corda nos dedos, soltando gostosas baforadas. Nunca arrota valentia, é de paz, simples, ingênuo, mas longe de ser pusilânime, medroso. Se a necessidade urge, o perigo é iminente, ele surge combativo e aguerrido para enfrentar o mais arriscado perigo. Preso às tradições, não dispensa um forró, um arrasta-pé, uma cantiga de roda, um bumba-meu-boi, uma festa– de- reis, uma festa junina, um São Pedro, um Santo Antônio, um canto de viola ou o choro de uma sanfona e pandeiro noite adentro, um forrobodó, com alegria, sem culpa e sem pecado. O símbolo reforça a fé do sertanejo, não existe uma casa, na cidade, no campo ou na serra, que na sua sala principal a imagem de Jesus Cristo na cruz, a imagem de Nossa Senhora e a imagem de São José não estejam ornamentadas nas paredes ou em cima duma mesinha tosca cuidadosamente arrumada e os mais ricos, com os seus nichos suntuosamente iluminados por luz elétrica. O jovem sertanejo assim que larga os cueiros, quando o bigode e a barba começam despontar, quando os pelos do púbis começam triangular, quando começa penugem de cabelo no sovaco, ele enrabicha-se pela filha do vizinho e a faz sua única mulher, na juventude, na mocidade e na velhice, deixando como herança, enorme quantidade de filhos e filhas. Hoje, com a civilização da cidade grande chegando, com os novos meios de comunicação, novos valores em pauta, esse modelo de família foi prejudicado na forma e na qualidade. O genuíno sertanejo não discute política, o seu princípio de autoridade é bíblico, se é autoridade, foi constituída por Deus. Se ele estiver errado, obedece sem discussão, qualquer meganha de farda. A vaquejada no sertão não é uma competição de interesse comercial, é uma festa, é uma atividade recreativa. Não existe uma preparação a priori, não existem exercícios específicos para melhorar os reflexos, a destreza e o desempenho do batedor e puxador, são habilidades adquiridas no manejo do gado, na ferração, na apartação e principalmente, na busca do boi fujão que se embrenha no mato. Enfim, o sertanejo não é um ser diferente e obtuso, um quasimodo de Vítor Hugo em Notre-Dame, o sertanejo é o super-homem das pradarias. O Sertanejo de Nova Acácia não é diferente. XXIII As guardiãs "Eu o Senhor, a guardo, e a cada momento a regarei, de noite e de dia a guardarei, para que ninguém te faça dano algum”. Isaías 27:3 Parecia que tudo tinha sido combinado, José chamou Sincrat de um lado e Marina chamou-o do outro, é que na mesma semana, José e Sandra, Augusto e Marina resolveram se separar, tudo não passaria de rotina nesses novos tempos se o padre não fosse amicíssimo dos casais e por dever de ofício tinha a obrigação moral de promover uma saída conciliatória e não uma separação, mas quando ele chegou aos casais, as coisas já estavam quase na casa do sem jeito, teve que usar sua habilidade diplomática e sua autoridade moral para consertá-las. José consentia a separação, mas com a condição sine qua nom de que Sandra se transferisse para cidade de Acácia sozinha e deixasse os filhos aos seus cuidados, ela insistia em continuar na mesma casa e cuidando dos filhos. -Padre, não é justo que ela continue aqui com outro homem, enquanto isso, eu serei motivo de chacota para essa gente!... – Sandra explode: -Não tenho nenhum homem. Aqui, moram os meus familiares, lá não tenho ninguém! -Cínica! -Calma rapaz! – pediu - lhe Sincrat. -Desculpe-me, padre!... -Não precisa se desculpar, o importante, é que encontremos um caminho... –continuou: -Posso lhes fazer uma proposta? -Fale! – ordenou-lhe Sandra -Quer ouvi-la José? -Para mim, qualquer proposta é aceita desde que não me impeça cuidar dos meus filhos... – Sandra intervém: -Quem cuida dos filhos é a mãe! -Quando tem condições morais! –Sincrat perde a calma: -Filhos, deixem essas agressões, assim não chegaremos a um acordo! -Desculpe-me padre, qual é sua proposta? -José, os filhos ficam com as mães, é lei! Porém, tu poderás visitá-los nos finais de semana e nas férias escolares, eles ficarão contigo; por outro lado, D. Sandra irá morar em Acácia que não é tão longe assim, para evitar os comentários desairosos de gente desocupada, concordam? – José quis resistir: -Ficar sem os meus filhos?... -Não vais ficar sem os seus filhos, José! – voltando-se para Sandra: -Filha, tu concordas morar um tempo em Acácia? -Padre, desde que acompanhada dos meus filhos! -Obrigado, Deus te recompensará pelo sacrifício!... O acordo foi selado. Os litigantes entenderam que as leis dos tribunais esbarram na disposição de espírito de cada um, nenhum juiz tem o controle efetivo da vontade, do capricho e da birra de cada indivíduo, é melhor um acordo com prejuízo do que uma demanda com lucro. A briga de Augusto e Marina, o estrago foi maior, os insultos recíprocos chamaram a atenção dos vizinhos, Augusto foi agredido fisicamente, por pouco não foram parar na delegacia, Marina não herdara o gênio prudente do pai, mas o destempero dos seus avós e seus tios paternos, não media as conseqüências de uma agressão física quando o sangue latejava-lhe nas veias. Sincrat foi chamado às pressas por Marina, ela lhe solicitou intercessão, que o padre mediasse aquele imbróglio e convencesse o traste do seu marido aceitar os seus termos que além da guarda dos filhos, exigia que o marido deixasse o lar somente com a mala de trapos e não aparecesse lá nem para visitar os filhos. Pasqualini, agora, mais cheio de vontade, com um novo projeto de vida não se curvava facilmente aos desejos e aos propósitos da esposa tirana. Também buscava a separação, mas de acordo a lei vigente, pois tinha como testemunha a população de Nova Acácia e a metade de Acácia do comportamento infiel da esposa. Não era segredo de ninguém, as saídas e as viagens constantes de José e Marina. Augusto advertiu-lhe que se sofresse nova agressão, os seus pruridos morais e profissionais não iam lhe impedir de registrar uma queixa às autoridades locais e processá-la. Quando Sincrat apareceu ao seu consultório no final do expediente, naquela tarde, a pretexto duma visita, ele não ignorava o subjacente motivo, mas estava firme e resoluto para rejeitar qualquer proposta de Marina e não o fez pelo o apreço que nutria pelo pároco: -Padre, algum problema com o coração? – brincou. -Físico não, todavia, o meu coração sofreu tanto nesses últimos dias do que toda minha estada em Nova Viçosa... – respondeu-lhe Sincrat reticente. -Se o problema não é físico, o senhor bateu na porta errada! -Não, se essa porta é a solução! -Então, estou à disposição, em que lhe posso servir? -Marina! -Marina? -Sim, ela lhe propõe uma separação amigável!... -Do jeito dela, não é, padre!? - irritado. -Filho, sua mulher tem um gênio difícil, mas o confronto acirra os ânimos e não soluciona! -Eu sei! Mas o senhor sabe o que desavergonhada me propôs? -Não! – respondeu-lhe Sincrat. -Que eu a deixasse com os filhos e saísse de casa somente com a mala de roupas e os objetos pessoais! -E aí? -Que acatarei qualquer decisão judicial! -Pelo que entendi, ela deseja uma solução amigável e não uma demanda! -Padre, se o senhor não fosse da minha estima e apreço, eu já não lhe ouviria! -Obrigado filho, a recíproca é verdadeira... – fez uma pausa e prosseguiu: -A minha função é unir, fico sem jeito quando tenho que falar de separação, sou um soldado de Jesus Cristo, porém, quando a união traz discórdia e agressão, acho que Deus faz uma concessão para que cada um encontre o caminho da felicidade! -Eu concordo com o senhor, não acredito nessa história “o que Deus uniu não se separa”, Ele é virtude, bondade e misericórdia para perdoar os pecados, mas jamais consenti-los! – considerou Augusto Pasqualini. -Caro discípulo de Hipócrates, irei te convocar para ajudar-me nas homilias, tu és também ilustrado em natureza divina!... – brincou Sincrat. -Obrigado, mas o meu conhecimento de Deus é intuitivo! -A intuição é o verdadeiro conhecimento!... – Augusto provoca o padre: -Qual é a solução amigável de Marina? -Filho, a felicidade é a conseqüência das nossas ações! -Padre, não estou entendendo!... -Filho, eu não sou nenhum moralista. O meu conceito de felicidade é da prática diária, mas se algo te traz infelicidade, renuncia-o, mesmo a contragosto! -Irei renegar os filhos? -Não, filho é filho, tu terás de vê-los, mas deves cortar aquilo te fazes infeliz, mesmo com prejuízo material. Tu és jovem, construirás tudo depois, ademais, tudo irá para os teus filhos! - Augusto ficou alguns minutos calado, depois, condicionou sua separação amigável: -O senhor tem razão e sou-lhe grato pela sua intercessão, porém, não confio naquela jararaca, por isto, condiciono a minha separação amigável em juízo, que os meus bens sejam transferidos para os meus filhos e possa tê-los em finais de semana e férias escolares! -Concordo!... Marina foi avisada dos termos da separação, tentou questionar, obstaculizar, mas Sincrat foi decisivo: -Filha, se ele partir para uma demanda litigiosa, o desgaste, a repercussão e o prejuízo moral e material serão inestimáveis!... Ambos os casais se separaram e seis messes depois, Nova Acácia e Acácia aceitaram José e Marina e Augusto e Sandra. XXIV Costanzo Dionigi Sincrat embora estivesse padre, começava sentir-se padre. Não era beato, fanático, era mais um homem de ação do que um homem de reflexão religiosa, não que fosse um homem sem fé, tinha muita fé, porém, uma fé dinâmica, trazida para dentro do seu dia-a-dia, para ele, Deus é a fonte de energia do movimento, da mudança, da transformação, da evolução. Valorizava demais o símbolo, como ponte para o transcendental, não que adorasse imagem, mas a imagem para Sincrat, era uma forma de estabelecer contato com as coisas do espírito: “o que os olhos não vêem o coração não deseja”. Ganhou de D. Ester uma imagem do padre Agnelo Torricelli, talhada em madeira, faz-se necessário dizer que uma linda imagem, que por não ter sido considerado santo pelo papa, ele a guardou discretamente no seu quarto e para sua surpresa, viu-se fazendo pedido de intercessão à Providência, ao seu antecessor. Torricelli teria que ter alguma coisa de verdade, porque o seu conceito de santidade, de milagreiro, crescia diuturnamente, não havia uma mansão, uma casa ou uma choupana que lá não estivesse um quadro ou uma imagem de pedra, de barro, de madeira, do velho padre. Não poderia haver um engodo de tamanha extensão... Não foi milagre, mas Sincrat sonhou com Torricelli dizendo-lhe que Jesus Cristo havia ouvido-lhe o clamor, que ele confiasse nos desígnios de Deus, que Ele lhe proveria e o soergueria da queda e do pecado. Torricelli lembrou-lhe também, que a justiça e a misericórdia do Altíssimo são infinitas e deu-lhe o exemplo de São Paulo que blasfemou, xingou, perseguiu os cristãos, depois foi escolhido para obra do seu filho único, Jesus Cristo. Não se sabe foi um sinal, alguma resposta ao seu pedido, porém, duas semanas depois desse sonho, Nova Acácia, Acácia e região foram atingidas com a morte repentina do bispo Costanzo Dionigi Sardgna, italiano de nascimento, brasileiro por opção. Dom Costanzo ainda estava rígido, seguro, não muito velho nem muito moço, um sessenta com cara e disposição de cinqüenta e se não fosse a rabugice, as idéias conservadoras, às vezes, retrógradas, ele teria feito um bom trabalho em face da lisura e seriedade na condução de sua diocese. Não freqüentava os gabinetes dos políticos, não lhe dizia respeito quem subisse ou descesse, odiava política partidária, quando por força do cargo tinha que procurar um desses medalhões, participar de suas posses, o fazia em estrito cumprimento do dever. Sua relação com os padres de sua diocese, era formal, ele não lhes dava maior intimidade, tratava-lhes com educação, mas com um torrão de frieza. Sincrat sempre se mantinha com um pé atrás quando recebia um recado do bispo Costanzo Dionigi, o homem era de uma presença moral que lhe dava arrepios. Ensaiou lhe contar a verdade sobre sua identidade várias vezes, mas na hora “H”, faltava-lhe coragem, tremia de medo de enfrentá-lo, a priori, sabia que no máximo, numa exceção, numa compreensão rara, Dionigi deixar-lhe-ia, somente, anoitecer e não amanhecer em Nova Acácia, teria que fugir como um rato foge para dentro de uma galeria de esgoto quando ameaçado. A morte Costanzo Dionigi não lhe deixou alegre, embora o temesse, o achasse radical, retrógrado em alguns momentos, subjacente, o admirava. Admirava-o pelo compromisso e por sua dedicação à igreja. Não lhe despertava interesse na administração temporal, nas mudanças físicas ou na construção de novos templos, os seus padres que se envolvessem nesse mister, mas empreendeu muitas ações para construção de um a igreja viva: evangelizar, evangelizar, evangelizar... Lembrava-lhes que Jesus Cristo não construiu templos, não construiu casas, sua missão foi acima de tudo e abaixo de tudo, evangelizadora, pregar a palavra de Deus, certa feita, um escriba propõe segui-lo aonde quer que fosse e Jesus Cristo lhe responde: “E disse Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mateus 8.20). O sepultamento de Costanzo Dionigi foi um acontecimento marcante, os políticos não perderam a chance de estar ao lado do povo. A população da região de Acácia e Nova Acácia, compareceu em peso, inclusive, contou-se com a insigne presença do Primaz do Brasil. XXV Casamento “E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada”. . “Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Gênesis 2: 23, 24). Não se risca fósforo dentro de um paiol, pois tudo poderá ir pelos ares, também, existe o provérbio popular que “onde há fumaça existe fogo”, foi assim que naquela manhã Sincrat soube pela boca dos próprios nubentes que iam se casar. Já havia antes que Sincrat assumisse a paróquia que Manduca e Ester mantinham um namoro às escondidas. Eles garantiram ao padre que tudo não passava de aleivosia daquela gente maldosa que não tinha o que fazer e ficava conjeturando sobre a vida dos outros e sustentaram esse fato até no dia do anúncio: -Padre, não existe verdade no cochicho do povo, eu e D. Ester sempre fomos amigos! -“Seu” Manduca não ligue, até Deus é alvo de queixas e negação, imagine nós, pobres mortais, somos condenados antes do julgamento... – continuou: -Ademais D. Ester, os senhores são solteiros e maiores! -Foi isso que falei ao “Seu” Manduca desde que resolvemos nos casar! – ele e ela ainda se tratavam por “seu” e “dona”. -Bem, agora, vamos ao que interessa: qual é a data? - Sincrat esbanjava alegria. -De hoje a um mês! – respondeu-lhe Ester. -Tão longe assim?... -Nós queremos tempo para colocar tudo nos conformes: vestido de noiva, terno de “Seu” Manduca... Eu quero entrar na igreja, padre, de véu e grinalda como se eu fosse uma mocinha!... – deu uma sonora gargalhada. -Parabéns D. Ester, assim que se pensa! – Manduca intervém: -Já escolhemos os padrinhos. Os meus são: Alexandre e esposa, o delegado e a mulher, Rocha e a irmã; Os padrinhos de D. Ester, ela me afiançou surpresa! -Deus os abençoe!... - concluiu Sincrat. A notícia do casamento de Manduca e Ester foi uma surpresa esperada. Surpresa porque todos pensavam que pela idade dos dois, houvesse um ajuntamento, eles juntassem os trapos e não fosse necessário casamento; esperada porque, todos achavam que mais dia menos dia, ambos assumiriam de direito o que havia de fato. Para o bem da verdade, faz-se necessário dizer que não houve antes do casamento nada além de uma singela amizade, pois, eles já não tinham o fogo na virilha do jovem, ademais, ambos eram religiosos por prática e convicção. Não obstante não terem mais a paixão e o arroubo do jovem, a convivência, o respeito recíproco e a admiração que cada um nutria um pelo outro no dia-a-dia, foram decisivos para o casório. Sós, perdidos no mundo, idade chegando, gentilezas trocadas, o afeto se somando, não se sabe como e quem primeiro teve a iniciativa de sugerir casamento: ele afirmava que tinha sido ela; ela jurava que tinha sido ele. Sincrat não foi o padrinho, mas propiciou ao “Seu” Manduca todo o enxoval: do sapato à gravata. A calça e o paletó foram feitos por encomenda ao melhor alfaiate de Acácia, de casimira inglesa, o pano foi comprado em Salvador e custou os olhos da cara. O sapato de couro envernizado foi uma nota, a camisa de mangas compridas e abotoaduras foliadas a ouro nem se fala, se a população católica soubesse iria reclamar ao padre o seu dízimo... O prefeito e a esposa, padrinhos de Ester, não deixaram por menos, ela entrou na igreja com um porte de princesa, mais, ela entrou na igreja com um porte de rainha e quando o padre pronunciou o célebre juramento: “na alegria ou na dor...”, para que o cônjuge desse o “sim” ou “não”, ela respondeu que o aceitaria com uma dignidade que surpreendeu ao próprio Sincrat, como se há muito, aquela resposta estivesse preparada na ponta da língua e na alma. Embora fossem duas pessoas simples, a elite e o povo de Nova Acácia compareceram em massa, talvez, pelo peso moral do pároco, mas não se pode descartar que Ester e Manduca fizeram ao longo do tempo, muitos amigos e nenhum inimigo. Cidade pequena, maioria católica, a população acostumou-se vê-los na celebração da missa ou nos afazeres da igreja cotidianamente, por isso, eles foram tão prestigiados. Por ironia do destino quando Ester jogou para trás o buquê, quem sem nenhum esforço pegou foi Sandra, mesmo com o assanhamento da sua amiga Gracinha, que lhe implorou: -Ahn, assim é demais Sandra, você já é casada, devolva para que Ester jogue de novo! -Não, Gracinha, eu já fui casada, agora, vou casar com Augusto, nem que seja numa igreja evangélica! -E você sabe se ele quer casar novamente?... Augusto tomou-lhe à palavra: -É o que mais desejo, Gracinha, nem que seja na Igreja Católica Brasileira!... -Existe essa igreja? -Sim! -Isso é pecado!!! – bufou... Para Sincrat mais uma etapa se fechava. Agora, poderia contar com a cumplicidade de Ester e Manduca para compartilhar o seu segredo e aliviar o peso de sua consciência que lhe consumia, eles jamais iriam dizer que o seu casamento não existiu, que o padre que lhes casou não era padre, mas um embusteiro que traiu a confiança da população de Nova Acácia e adjacência, pela irresponsabilidade de sua igreja. Mário Silva, pouco e pouco perdia sua identidade, sua mente já tinha incorporado Sincrat, se não fossem os sonhos, cada vez mais frequentes, o diacho de sua consciência ficaria em paz, mas um “diabinho” interior insistia lembrar-lhe todas as noites que Maria Silva é Mario Silva e Sincrat é Sincrat!... XXVI O bispo "O SENHOR retribua o teu feito; e te seja concedido pleno galardão da parte do SENHOR Deus de Israel, sob cujas asas te vieste abrigar." (Rute 2:12). Demorou, mas saiu a nomeação para o bispo de Acácia. Os amigos de Sincrat fizeram dezenas de abaixo–assinados, solicitando ao Núncio Apostólico, sua indicação (a contragosto, é necessário esclarecer...), para sua nomeação de bispo. Não faltaram esforços, uma comissão de jovens mulheres do Apostolado Mariano, foi diretamente entregar ao embaixador do Vaticano, o desejo do povo de Acácia, Nova Acácia e região, mas graças aos pedidos de Sincrat à Providência, a Santa Sé deu o silêncio como resposta. As admiradoras de Sincrat ensaiaram ir ao Papa, donde já se viu contrariar o povo e mandar pra lá um alemão? Se não fosse a interferência do pároco, rogando-lhes bom senso, prudência, que não se contraria o Santo Papa, elas teriam embarcado para Roma. Foram dias tensos para o padre e mais noites sofridas. Ficou feliz com tantas provas de carinho, tantas manifestações de apreço. Seu amigo Rocha foi o patrono da comissão que foi ao Núncio Apostólico e se não fossem os pedidos de Sincrat para que não insistisse com o Vaticano, ele teria mandado as mulheres ao Santo Papa, o homem não media esforços para vê-lo e fazê-lo bispo. A notícia embora esperada, ela chegou inesperada por um jornalzinho da igreja católica editado em Salvador, semanalmente, era distribuído em todas as paróquias da capital e do interior. O periódico estampava na sua página principal, a foto do novo bispo e um resumo biográfico do bispo nomeado para diocese de Acácia e região. Max Fritz Kohler, nascido no estado de Hamburgo, feito os seus estudos em Berlim, doutor em Filosofia, mestre em Teologia, poliglota em mais de 5 idiomas e mais de 20 anos de Brasil, falava o português sem sotaque, quem não o conhecesse o tomava por brasileiro de pai ou mãe alemã. O Primaz do Brasil não foi a Acácia na posse do novo bispo, designou um arcebispo para representá-lo. Todos os prefeitos, vereadores, oficiais militares, juízes, promotores, empresários, fazendeiros, da jurisdição da diocese compareceram, foram levar ao novo bispo, os seus votos de boas-vindas e colocar-lhe à disposição suas prefeituras, os seus órgãos e suas empresas. A recepção não poderia ter sido melhor, Max Fritz Kohler ficou impressionado com os gestos de apoio e solidariedade, no seu discurso assumiu o compromisso de sua igreja cooperar administrativamente com todas as autoridades, porém, separou o temporal do espiritual, que por força de sua função jamais tomaria atitude sectária, se envolveria em política partidária, o máximo que faria, seria dissuadir o povo que não votasse em candidatos de idéias comunistas e tendências totalitárias. Porém, o Arcebispo de Salvador foi contundente com as novas denominações evangélicas que dia-a-dia, surgiam na região, aconselhou aos presentes não deixar-se ludibriar pelos falsos profetas e falsas curas, a Bíblia fala desses falsos pastores há quase 2000 anos, que eles surgiriam pregando o nome de Jesus Cristo, mas eram lobos travestidos de cordeiros, enviados do demônio e citou o versículo de Apocalipse (22:15) : -Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira! - continuou com (Efésios 4:14) : . - Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente! – finalizou com II Timóteo (1: 8: 9): -Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso SENHOR, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus, -Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos!... – o homem estava uma fera... Chapéu novo, três dias no torno como diz a sabedoria popular, Fritz teve que enfrentar vários problemas administrativos deixados por Costanzo Dionigi, a única paróquia que ele achou sem problema maior foi a paróquia São José. Achou importante o trabalho social e educacional de Sincrat, como seu pároco, não era muito dado à beatice e à paixão religiosa desenfreadas, o seu modelo maior era São Paulo, que evangelizou sem abdicar do seu trabalho para lhe prover. Achou importante a idéia do seminário (em fase de acabamento), iria facilitar para os jovens da região, seguirem à carreira eclesiástica sem a necessidade de se deslocarem para um centro mais distante. E que daquela data em diante, iria prover Sincrat de mais recursos para atender às últimas necessidades e até combinaram uma data para inauguração. Sincrat ficou mais alegre do que tabaréu com roupa de domingo, gostou do alemão, ali estava um homem que sabia agregar o trabalho à fé, não tinha frescura, Deus deu ao homem o exemplo do trabalho, não acreditava num céu de pasmaceira, que os santos vivessem em infinita contemplação, pois se assim o fosse, seria melhor ressuscitar e viver as atribulações da terra. Pessoalmente, gostou de Costanzo Dionigi Sardgna, o admirou em algumas ocasiões pela sua estatura moral, mas reprovava sua estreiteza mental na leitura do mundo. O homem era uma toupeira para certos assuntos, não percebia as mudanças que ocorriam cotidianamente ao seu redor, conduzia sua igreja calcada em dogmas e tradições obsoletas, por isto, pensava Sincrat, novas denominações religiosas tinham se proliferado dentro de pouco tempo. Não mais pensava mais confiar o seu segredo a Manduca, pois tinha chegado à sua diocese um homem que falava sua linguagem e o seu modo de enxergar o mundo, além de intelectualmente e hierarquicamente lhe ser superior. Por isso, decidiu falar... XXVII O barraco “Agora, quanto àquelas perguntas que vocês fizeram na última carta, minha resposta é que, se não se casarem, é bom” (I Coríntios 7:1), “Depois disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem fique sozinho. Vou fazer uma companheira para ele, uma auxiliadora à altura dele” (Gênesis 2 :18). Relutei escrever este episódio, mas ele se passou e não poderia negar ao leitor a verdade dos fatos. Ademais, o termo “barraco” é sugestivo e diverso em sua acepção. No cotidiano, “barraco” é uma casa de madeira, feita, geralmente, nos morros, na periferia dos bairros pobres das médias e grandes cidades. O barraco é uma construção tosca, coberta de telha de “Eternit”, lata, zinco, palha, piaçava e chão batido. Mas, amigo leitor, “barraco” tem outras acepções que ainda não são conhecidas em todas as regiões do país: quizumba, confusão, presepada, briga, rolo e, “barraco” ainda é usado, quando alguém com falsa modéstia, que mora numa mansão, diz: “apareça no meu barraco”, “vá ao meu barraco”, “desculpe-me, é um barraco, é casa de pobre” e por aí vai... “Barraco” não é destempero somente de pobre, de pessoas menos educadas, social e economicamente inferiores, pessoas menos ilustradas, os doutores também fazem quizumba e aprontam os seus “barracos”. Os motivos são os mais fúteis, o principal ingrediente é o ciúme, mas a bebida e o gênio forte podem ser os principais fatores. Em uma festa de aniversário, o aniversariante, médico e amigo comum de Augusto e Marina, ex-cônjuges, lhes convidou. Já passava da meia noite, quando José e Marina começaram uma pálida discussão que dentro de pouco tempo, eles chamaram a atenção dos demais convidados. Dois bicudos não se beijam: José, ignorante por natureza e falta de educação; Marina, destemperada congênita, o fósforo e a gasolina, qualquer centelha causava uma explosão. José começou cismar com Marina desde que chegou à festa, pois a danada, depois de duas talagadas de vinho, começou dar em cima de Augusto. Sandra, mais dócil e mais bonita, cheia de si, foi contida pelo marido: -Não ligue querida, ela está bebendo! -Mas, ela está dando em cima de você descaradamente!... -É inveja, ela está a fim de lhe provocar, ela não mede barraco, cuidado!... José ninguém o conteve, depois de uns dois whiskys e alguns copos de cerveja, por pouco não deu uns tapas na doutora, a turma do deixa-disso, a salvou. Todavia, faz-se necessário esclarecer que o imbróglio seria imprevisível, bater em Marina, seria o mesmo que futucar onça com vara curta, certamente, ela lhe quebraria as fuças e os quibas. A turma da paz evitou a agressão física do casal, mas os xingamentos não foram contidos: -Vagabunda! -Veado! -Cachorra! -Pau mole, frouxo, xibungo!!! – “pau mole” foi o epíteto que mais deixou José... -Pau mole, chuparina? Depois que você me chupa, ele fica mole!... As mulheres começaram sair. José foi arrastado com jeito para o carro. Augusto e Sandra saíram de fininho assim que o barraco esquentou. Marina foi dormir na casa de uma amiga e a festa acabou. Enquanto houver macho, haverá machismo, a libido mexe mais nas entranhas do macho do que da fêmea, sua cabeça é força, é vitalidade, é reprodução, quando alguém o deixa impotente ou pecha-lhe de impotência, é como se lhe arrancasse à força sua masculinidade e foi assim que se sentiu José. A curiosidade do macho é natural, principalmente, se existe uma história de vida comum. A curiosidade e o medo mexeram em Augusto. Nunca tinha brigado com Marina daquele jeito, motivos não faltaram, mas deixou-se levar pela subserviência, pelo conformismo, ela dava as cartas, ele obedecia, quis saber: -É verdade, querida? -O quê?... – fez-se de desentendida. -O que Marina disse de José!... -Não sei! – continuou: -Nunca fiz e nem farei tamanha baixaria, embora não seja doutora! -A educação de berço é importante... – insistiu Augusto: -Mas... É verdade?... -Augusto, cumplicidade se compartilha não se divide, ainda mais quando o cúmplice é pai dos seus filhos, por favor, não me tome por sua ex-mulher, senão, vou lamentar sua separação! – irritada. -Oh, não!... – depois: -Desculpe-me querida, fui inconveniente, jamais lhe tomarei por Marina! -Espero!... As mulheres, com raras exceções, são naturalmente dissimuladas, dóceis na rua e amargas dentro de casa, uma difere da outra no grau. Comparar Sandra e Marina, seria comparar uma gata com uma leoa: a primeira, arranha; a segunda, arranha e mata. Augusto foi infeliz em sua indiscrição. Jamais iria obter de Sandra detalhes íntimos do seu ex-marido. Ele foi ingênuo na percepção, ela nunca falava do passado, raríssimas vezes, referiu-se a Jose ou Marina e nenhuma vez na cama. Marina tinha um imã que prendia o parceiro, foi assim ao longo de sua vida amorosa, ela quem, de modo geral, colocava fim em seus causos, foi assim com quase todos os seus parceiros amorosos. Parecia que ela não tinha esquecido José tê-la trocado por Sandra, na sua juventude, talvez, isso tivesse contribuído para que o tomasse da outra, pois só assim se explica José e Marina encontrarem-se de mãos dadas, nas ruas de Nova Acácia, como se nada tivesse acontecido, depois de uma quizumba sem precedente. Um moleque que os viu passar, sentenciou: - Deus faz, o vento espalha e o diabo ajunta!... XXVIII Seminário São Francisco Seis meses depois da posse do bispo Max Fritz Heike, o Seminário São Francisco (Sincrat o admirava mais do que a São José), finalmente foi inaugurado. Sua Ex.ª Rev.ª lamentou que a obra não tivesse sido feita em Acácia, cidade maior e sede da Diocese, mas aceitou as justificativas de Sincrat, que as duas cidades tinham interesses comuns, pequena distância duma pra outra e que o terreno foi doado por um influente negociante de Nova Acácia, que além do terreno, ele socorreu financeiramente, várias vezes, para o término construção. O seminário ficou maior e mais funcional do que Sincrat tinha imaginado no projeto inicial. Coadjuvado por “Seu” Manduca e o engenheiro, a obra foi dividida em três partes: uma casa de moradia do padre-reitor; um prédio com 12 salas de aula, um auditório, uma biblioteca, um refeitório e salas administrativas e agregado a todo isso, um prédio separado por um muro (acesso independente), que abrigaria alguma Ordem Religiosa de freiras, a critério do bispo, mas Sincrat pensou nas irmãs clarissas, versadas em Filosofia, Teologia, Canto Gregoriano e Liturgia e Franciscanismo, algumas com formação pedagoga, não obstante os seus votos de obediência, castidade e clausura, contribuiriam no futuro para formação intelectual e moral das postulantes e noviças. Na frente do seminário fez-se um grande e bonito jardim e nos terrenos do fundo, Sincrat mandou fazer uma horta e uma chácara irrigadas, potencialmente, capazes de abastecer de verduras, legumes e frutas o seminário e a casa das freiras. A cidade de Nova Acácia ficou em festa, o comércio parou. Compareceram autoridades e delegações católicas de toda região da diocese de Acácia, proporcionalmente, a festa foi maior do que a posse de Dom Fritz. Os oradores não economizaram nos adjetivos ao pároco. Rocha, amigo de Sincrat e principal colaborador do feito, teve sua oportunidade de falar, além de elogiá-lo, queria vê-lo prefeito ou bispo e o povo concordou... O bispo também teceu os mais elevados encômios ao trabalho do seu pároco e desde que assumiu a diocese de Acácia não ouvira outra coisa da população, senão, os comentários auspiciosos ao desempenho do sacerdote e a desenvoltura administrativa do homem, embora não gostasse de demonstrar preferência pessoal pelos seus padres, pois todos são filhos espirituais, Sincrat dentro de pouco tempo, conquistou um espaço especial em seu coração. Discursos proferidos, instalações visitadas, santinhos distribuídos com a imagem frontal do seminário e no verso, o agradecimento da Diocese e de Sincrat, às autoridades municipais, ao comércio, aos fazendeiros, ao povo e uma homenagem especial in memoriam ao saudoso bispo Costanzo Dionigi Sardgna por ter autorizado e incentivado a construção do Seminário São Francisco. “Sincrat” tornava-se cada vez mais Sincrat!... XXIX O enviado “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”. “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado”. “E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas”; “Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão” (Marcos 16:15..., 18). Uma semana depois da inauguração do seminário, Sincrat foi convocado pela Diocese de Acácia, Dom Fritz queria vê-lo com urgência, não mandou ofício, memorando, carta ou coisa que o valha, mandou o recado por um preposto da Diocese de Acácia, esses gestos práticos de Sua Excelência Reverendíssima, fascinavam o pároco, cada vez mais acostumado e fascinado pelo bispo alemão. Já tinha pisado naquela soleira uma dezena de vezes, mas ia a contragosto, somente quando era intimado por Dom Costanzo que o intimava com protocolo, por isso, nunca havia prestado atenção na beleza daquele prédio de linhas estéticas modernas, no meio dum quarteirão, ladeado de jardins e área livre. Dom Fritz o recebeu com gestos desabridos como se fossem velhos pareceiros: -Olá meu querido Sincrat!!! – dando-lhe um abraço. -Vossa Excelência mandou me chamar? -Sim!... O bispo depois de tecer elogios sobre as ações de Sincrat, os seus empreendimentos, sua vocação evangélica, o seu prestígio na comunidade e comunicar-lhe que em contato com os seus pares iria trazer para o seminário três jovens sacerdotes da Ordem Franciscana e quatro jovens clarissas. Mas, a notícia que deixou Sincrat bambo das pernas e surpreso, veio por último: -Vou transferir monsenhor Xavier para sua paróquia e nomear-lhe vigário-geral! -Eu assumir o lugar do monsenhor Xavier!? -Sim, rapaz! Não se sente capaz?... – Sincrat ficou aturdido... -E aí, não quer ser monsenhor, rapaz? -Nã...nã... é que... não esperava... – as palavras saíram à força... -Dou-lhe uma semana pra pensar!... Flashes de um filme passaram em sua cabeça, desde o seu encontro com o verdadeiro Sincrat até aquele momento. Deixou o seminário mais falta de vocação do que por necessidade, a morte dos seus pais, foi mais uma racionalização, embora tivesse desempenhando a contento o sacerdócio, não tinha a fé dos apóstolos, não se sentia um embusteiro, mas era um embusteiro aos olhos e na percepção dos que descobrissem o seu segredo, agora, o bispo lhe oferecia um título e uma função que iriam lhe dignificar aos olhos dos homens, mas uma mentira aos olhos de Deus, corajosamente, rejeitou: -Vossa Excelência Reverendíssima me perdoe, mas eu não posso aceitar essa honraria! -Não pode ou não quer? -Não quero, não estou preparado para função! -Padre, tu és ipso facto um vigário-geral, fez mais coisas na do que o saudoso bispo!... – com uma pontinha de deboche ao seu antecessor. -Fiz com a sua autorização e consentimento! -Eu sei. Continuará assim, porém, o senhor irá trabalhar aqui, numa sala contígua à minha, assessorando-me! – falou com autoridade. Sincrat ficou num beco sem saída , o seu superior, pelo jeito, não lhe deixaria escapar, embora o tivesse chamado e lhe tivesse feito uma proposta democrática, a priori, já havia decidido essas mudanças. O pároco movido por uma força oculta, num insight inesperado, convenceu-se de que naquela hora ou nunca, teria que resolver o problema que lhe vinha atormentado o juízo há meses: -Tenho um segredo e gostaria de revelá-lo! -Fique à vontade, reverendo! -No confessionário!... -É tão grave assim? -Sim!... O bispo não se fez de rogado, puxou-o pelo braço e ambos se dirigiram para uma capelinha que ficava duas ou três salas adiante do seu gabinete. Deixou-o de joelhos, colado ao tribunal de penitência, enquanto se acomodava dentro do biombo, fazia suas orações e começasse ouvi-lo: -Eu não sou padre! -Não entendi... -Eu não sou padre!!! -Quê história é essa!? -É uma longa história!... -Quer confessá-la? -Sim! -Sou todo ouvido, filho!... Sincrat disse chamar-se Mário Silva, como encontrou o verdadeiro Sincrat, que misteriosamente aquele sacerdote apareceu pedindo-lhe para transportá-lo de Acácia até Nova Acácia, de aparências semelhantes, como se fossem gêmeos univitelinos, impossível de identificá-los separadamente, a conversa da viagem, o tempo chuvoso e a estrada escorregadia, o acidente, o pedido do padre antes de morrer, a troca de identidade, os conflitos, a assunção, as aparições nos sonhos do verdadeiro Sincrat, rogando-lhe a continuação da missão, os trabalhos sociais desenvolvidos em Nova Acácia, a aparição e morte de Beto, ia dispensar o resto, pois já era do conhecimento do bispo. Sincrat confessou-lhe tudo: os seus medos, as suas angústias, os seus pesadelos, os seus conflitos diuturnos, tudo, tudo, Dom Fritz ouviu-o impassível, quase não se mexia, não o interrompeu, deixou-lhe à vontade e somente falou quando o pároco esgotou sua confissão: -Filho, tu agistes mal sustentando essa farsa por tanto tempo! -Fiquei na casa do sem jeito, ademais não prejudiquei ninguém, não prejudiquei a igreja, ao contrário, arrebanhei para o seu seio muitas almas confusas e desviadas!... -Detrás duma mentira? -Não, senhor, por trás de um compromisso que não procurei e não pedi. Renunciei ao mundo, à família, para atender aos apelos dum moribundo, que nos estertores da morte, confiou-me uma missão!!! -Mas, pesardes no estrago que faria à igreja se as pessoas que receberam os seus sacramentos descobrissem que o senhor não é padre? -Batizei, casei, dei extrema-unção, abençoei, celebrei, tudo em nome de Jesus Cristo, sou o seu apóstolo, o seu enviado, digo isto com confiança pois recebi muitos sinais. Pedro, André, João, Tiago, Filipe e os demais, não eram doutos, eram pescadores, pessoas simples e rudes, entretanto, foram enviados, receberam o dom da cura, do perdão e expulsar espíritos malignos, eu também, fui enviado por Jesus Cristo!... -Ah, o senhor se acha um predestinado!? -Não existe outra explicação!... -O senhor poderia ter ido para uma Ordem de leigos e prestar, praticamente, os mesmos serviços à igreja! -Fui estimulado e obrigado pelos últimos suspiros de Sincrat! – num lampejo divino, jogou-o entre a cruz e a espada: -Se Vossa Excelência Reverendíssima quiser, entregar-me-ei à justiça pelos crimes de falsidade ideológica que pratiquei e pedirei desculpas à comunidade de Nova Acácia e Acácia!... – o bispo perdeu o fôlego, depois de algum tempo: -Não!... – fez uma pausa: -O senhor irá voltar para sua cidade com a minha promessa de vigário-geral, o monsenhor Xavier irá assumir o seu lugar, doravante exima-se das práticas sacerdotais, fuja daqui e assuma sua verdadeira identidade aonde chegar! -Não! Não irá dar certo, a comunidade não aceitará assim sem mais nem menos a minha fuga, menos ainda a minha substituição, dê-me um mês e a promessa pública de uma missão no Vaticano para um curso de aperfeiçoamento.... – o bispo pensou... -E aonde irá? -Não sei, irei assumir a minha identidade em algum lugar distante do país! -Concordo, farei chegar à comunidade, a notícia de sua viagem para completar os seus estudos, enquanto isso, o senhor se despede e justifica aos seus fiéis e aos seus amigos, a necessidade de se aperfeiçoar, intelectualmente, para melhor servir à comunidade! – e aí, o bispo deixou o confessionário e deu-lhe as costas como afago. A comunidade não quis entender a nova missão que o bispo confiou a Sincrat, o padre não precisaria de mais cursos, possuía sabedoria para guiar a contento suas ovelhas e se alguma sabedoria fosse necessária, Deus o proveria. Manduca e Ester passaram da conduta passiva ao inconformismo, como a maioria, achavam desnecessária a viagem do padre ao exterior para cursos que não iam acrescentar nada à comunidade, senão, chorar sua ausência. *** Sincrat não fez a viagem. O bispo Max Fritz Heike foi encontrado morto em sua banheira com uma garrafa de vinho. A perícia atestou que não foi suicídio nem overdose de bebida, mas um infarto fulminante. As línguas maledicentes sugeriram envenenamento, mas os exames a posteriori confirmaram o laudo inicial. O padre de Nova Acácia não mediu esforços para conclamar o povo da região para o féretro e sepultamento da autoridade religiosa. O padre Xavier ficou novamente na interinidade da diocese, dirigindo-a, ipso facto, como o tinha feito ao longo daqueles cinco ou seis anos, enquanto novo bispo fosse escolhido, alguém lembrou o seu nome para concorrer ao bispado, mas o santo homem lembrou-lhe que sua idade já não o ajudaria. Sincrat mais uma vez foi indicado e não fez objeção... XXX O destino “Não se vendem dois passarinhos por um centavo? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai. E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos”. (Mateus 10.29-31). “Alguém poderá argumentar lendo este texto como que no século XXI, um incauto qualquer ainda perde o seu tempo para escrever sustentando o fatalismo, o determinismo ao invés de sustentar o livre arbítrio, tese consumada por tantos doutos das ciências humanas em voga e das tradicionais. Responder-lhe-ia que estou usando do seu livre arbítrio e não do meu determinismo para colocar no papel as minhas idéias retrógradas. E, entre os textos científicos que hoje dizem uma coisa e amanhã diz outra, prefiro ficar com a sabedoria popular que é empírica e milenar. Se não fosse ousadia (não é nova a proposta), sugeriria aos homens de ciência que eles construíssem um tratado conciliando os dois pensamentos filosóficos, porque somente crendo num destino traçado pelo Criador é que se explica essa história de Mário Silva, motorista de táxi, ex-seminarista, sem projeto de vida, é tragado por uma força estranha e duma hora pra outra, vê-se dentro de um redemoinho de coisas acontecendo sem o seu controle e desejo” (Texto adaptado da crônica: Joaquim Maria Machado de Assis, do mesmo autor). “Mas se alguém contra-argumentar usando o livro de Deus que Ele deixou como herança para o homem a escolha do bem e do mal, replicarei que lá também está escrito que “...não cairá uma folha da árvore sem o consentimento do Deus”, noutro lugar está escrito: “... ele nasceu cego para que se manifestasse a vontade de Deus”, ou seja, temos um livre arbítrio relativo com forças desconhecidas por trás” (Id.). Certamente, o grande Pai deixou para cada homem um caminho com várias transversais, esse caminho poderá ser partilhado, mas nunca transferido, cada ser dificulta ou facilita sua caminhada... FIM Gênero: romance (ficção, qualquer semelhança, é mera coincidência). Capa: Imagem da Internet Autor: Rilvan Batista de Santana, professor, licenciado em Filosofia/Matemática, pós-graduado em Psicopedagogia. Obra registrada: a reprodução tem que ser ipsis litteris, inclusive, o nome do autor. Proibido: omitir ou acrescentar fatos. São Caetano - Itabuna – Ba. e-mail: rilvansantana2005@yahoo.com.br .

2 comentários:

  1. Como sempre, o professor Rilvan nos brinda com leituras fáceis, compreensível e empolgantes.
    Breve ele estará se tornando um dos nossos grandes nomes da literátura sulbaiana.
    Hilton Barreto

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  2. Negros, brancos, índios, mulatos, pardos e mais outros nomes são atribuídos para pessoas que trazem diferença na cor da pela em relação a outras. Existe até quem chame essa diferença de cor de pele de "raça". O verdadeiro preconceito só terá uma interrupção definitiva quando não existirem mais essas pseudo-diferenças que não trazem para a humanidade nenhum benefício.

    Se existe alguém é considerado de uma "raça" diferente por causa da cor da pele e do cabelo, então deviam ser considerados de outras raças todos aqueles que calçassem um número diferente, e também aquele que fosse mais gordo ou menos gordo do que outros. Na realidade, cada ser humano pertenceria a uma raça, porque todos têm a sua individualidade.

    A verdadeira aparência se encontra dentro do coração de cada indivíduo. Essas nomenclaturas determinadas pela cor da pele, deveriam ser extintas da face da Terra. Dessa forma diminuiriam as diferenças e todos poderiam se conscientizar que entre os homens, só existe uma raça: "A RAÇA HUMANA".

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